Artigo publicado na Musica Hodie Revista do Programa de Ps-Graduao em Msica da Universidade Federal de Goinia, vol. 6, n.2, Goinia, 2006.

 

AS LIGADURAS LONGAS NA CIACCONA EM R MENOR BWV 1004 DE J. S. BACH E SUA ADAPTAO EM TRANSCRIO PARA VIOLO

Thiago Colombo de Freitas

Daniel Wolff

 

Resumo: Este trabalho um estudo das ligaduras longas na Ciaccona em r menor quinto movimento da Partita II para violino solo, BWV 1004 de Johann Sebastian Bach (1685-1750), e sua adaptao em uma transcrio para violo. A interpretao dos sinais de articulao indicados por Bach abordada a partir de referenciais tericos e prticos. So discutidas as tradies de execuo e os variados entendimentos atribudos por estas aos sinais de articulao.

Palavras-chave: Bach ciaccona articulao musical retrica barroca tradies de execuo

 

Abstract: This work is a study of the long slurs in Johann Sebastian Bachs Ciaccona in D minor (fifth movement of the Partita BWV 1004 for solo violin), and their adaptation in a guitar transcription. Bachs articulation indications are examined in the light of theoretical and practical references. The discussion also focuses on performance traditions and the various understandings of the articulation markings led to by these traditions.

Keywords: Bach ciaccona articulation Baroque rhetoric performance traditions

 

Articulao e msica barroca

O presente artigo um estudo da articulao musical na Ciaccona BWV 1004, de J. S. Bach, e seu entendimento conforme tradies de execuo de distintos perodos. Sero enfocadas ligaduras longas abarcando quatro ou mais notas e sua aplicabilidade ao violo.

Estudar a articulao musical em obras do perodo barroco imprescindvel para o entendimento e, por conseguinte, para a execuo de uma msica fundamentalmente orientada pela linguagem, que, nas palavras de Harnoncourt (1984, p. 42), fala, em contraposio msica posterior a 1800 que, a grosso modo, pinta.

Segundo Hermann Keller (1955, p. 46), tal qual o fraseado, tambm a articulao musical deriva da linguagem. Os sons da fala se compe de vogais, aqueles com sonoridade prpria, e consoantes, que se combinam com as mesmas. Emiti-las claramente e delimit-las umas das outras a misso da articulao lingstica. A criana aprende a falar aprendendo a articular.

A importncia da articulao musical apontada por Keller em estudo que nos remete s palavras de Schenker, segundo o qual, o problema deveria apoiar-se sobre uma base vocal, ou seja, sobre aquela arte da distribuio da respirao que se perdeu h muito, mas que, no obstante, de uma maneira misteriosa constitui tambm o fundamento da articulao musical (SCHENKER apud KELLER, 1955, p.7).

Harnoncourt (1984, p. 49) diz que articulao o nome dado ao processo tcnico de falar, a maneira de proferir as diversas vogais e consoantes. Em 1903 Meyer (apud Harnoncourt, 1984) afirma que articular dividir, expor algo ponto por ponto; fazer com que as partes separadas de um todo apaream claramente, sobretudo os sons e as slabas das palavras. Na msica, compreende-se por articulao o ligar e destacar das notas, o legato e o staccato, bem como a sua mistura, para a qual muitos empregam abusivamente o termo frasear. Deparamo-nos com o problema da articulao principalmente na msica barroca, mais precisamente na msica de 1600 at 1800, pois esta fundamentalmente orientada pela linguagem. Os paralelos com a linguagem foram acentuados por todos os tericos daquele tempo, e a msica era freqentemente descrita como uma linguagem de sons.

O trabalho como professor de msica somado experincia pessoal de aprendizado nos mostra uma dificuldade singular no estudo de obras de perodos anteriores ao sculo XIX. Esta dificuldade est ligada diferena fundamental de conceito referida por Harnoncourt, que nos permite dividir, ainda que de forma superficial, em duas partes a msica ocidental do medievo at hoje, e nos leva a denominar msica antiga a msica feita antes do sculo XIX. Podemos dizer que, para ns, esta linguagem dos sons constitui uma lngua estrangeira, j que no somos homens do barroco (Harnoncourt, 1984). O aprendizado desta lngua implica em en-tender uma arte-linguagem baseada nos princpios da retrica[1].

A arte do discurso musical est, ento, dividida em trs partes: Inventio, idia bsica a ser apresentada; Dispositio ou Elaboratio, esqueleto da pea; Pronuntiatio ou Elocutio, apresentao do discurso (KLOPPERS, 1965, p. 56-65, 196, in: BUTT, 1990, p. 16). De acordo com Butt (1990, p. 16), Inventio pode ser facilmente associado com o Affekt[2] Ԝnico tradicionalmente associado com cada pea musical [...] Decoratio[3] a continuao do mesmo processo [Elaboratio], adicionando detalhes e palavras ou frases individuais. Cabe ao executante a tarefa de realizar o elocutio, mas este s poder ser bem concretizado se o executante tiver conhecimento sobre as etapas anteriores. Temos ento que conhecer os afetos contidos na obra (inventio), entender as inflexes que exibem ou ocultam figuras[4] significativas, anotadas pelo compositor para tornar atraente o texto (decoratio), e conhecer as tradies de execuo, onde encontramos referenciais prticos, que nos auxiliaro nesta realizao da etapa final, o elocutio.

Metodologia

Na tentativa de transpor para o violo os efeitos sonoros criados pelas referidas indicaes, fez-se necessrio um estudo do seu significado, j que estas suscitavam interpretaes diversas por parte dos prprios violinistas. Cabia pesquisar, antes de tudo, o significado destes smbolos anotados por Bach e os procedimentos adotados pelo prprio compositor para adapt-los em suas transcries.

Harnoncourt (1984, p. 49) diz que os sinais de articulao continuam os mesmos atravs dos sculos, inclusive no perodo posterior a 1800, mas o seu significado est sempre passando por mudanas radicais. No que tange ao entendimento dos sinais de articulao de Bach, tomamos como base os autores Hermann Keller (1955), John Butt (1990) e Nikolaus Harnoncourt (1984).

Ainda que no tenham sido citados ao longo do trabalho, estudos sobre autenticidade nas prticas interpretativas, presentes na bibliografia, foram importantes dentro da pesquisa. O estudo sobre a transcrio de Segovia da Ciaccona, de Eros Roselli (1990), foi referncia sempre que comentada esta transcrio.

Este trabalho baseou-se tambm em uma srie de referenciais prticos e terico-prticos. As transcries para violo das sutes para violoncelo de Stanley Yates e seus ensaios sobre arranjo, interpretao e performance de J. S. Bach, bem como a edio urtext da obra integral para alade, de Tilman Hoppstock, formam o que consideramos as referncias terico-prticas. Nesta definio tambm cabe citar o trabalho de Rodolfo Betancourt sobre a Ciaccona e sua transcrio para violo.

Os referenciais prticos propriamente ditos so as partituras de edies prticas e as gravaes. Foram ouvidas numerosas gravaes da Ciaccona em violino, violo, violoncelo, cravo, alade e orquestra sinfnica e observadas quatro edies para violino, trs para violo e duas para piano, alm de muitas outras obras do compositor para diversas formaes.

Tal nmero de edies e gravaes no permitia o aprofundamento necessrio, visto a desproporo com o escopo do artigo. Sendo assim, foram selecionadas trs gravaes de violinistas (Nathan Milstein, Itzhak Perlman e Thomas Zehetmair) e cinco gravaes de violonistas (Andrs Segovia, Juliam Bream, John Williams, David Russell e Eduardo Fernndez), visando que estas fossem representativas de tradies de execuo variadas. Utilizando o mesmo critrio, selecionamos duas edies tradicionais do violino (Enrico Polo e Henryk Szeryng) e duas de transcries para violo (Andrs Segovia e Abel Carlevaro). Tanto as gravaes como as edies so analisadas usando como objeto de comparao: o manuscrito, bem como as edies urtext Neue Bach-Ausgabe e Neue Bach-Gesellschaft.

ANLISE DAS LIGADURAS

Segundo Butt (1990, p. 180), na msica do sculo XIX dois nveis de ligaduras so freqentemente usados: ligaduras curtas indicam os detalhes de articulao e ligaduras longas implicam em um fraseado genrico. O termo frase cada vez mais evidente nos dicionrios musicais do final do sculo XVIII. A definio de Rosseau na Encyclopdie (1751-7 vol. 12 p. 530) pareceu ter sido de grande influncia, reaparecendo no Dictionnaire (1768 p. 376). [...] No h aparies autnticas do uso simultneo de ligaduras grandes e pequenas na msica de Bach examinada nesta pesquisa.

Desta afirmao possvel deduzir uma caracterstica do pensamento musical barroco. O uso simultneo de ligaduras grandes e pequenas ao qual se refere Butt tpico da msica de Beethoven ou Brahms. Nesta msica possvel falar de ligaduras de frase, ou seja, ligaduras que indicam incio e fim de uma frase musical completa. Em Bach, as ligaduras longas indicam gestos musicais que, somados, formam uma frase propriamente dita. Isto implica em um processo de construo musical onde as melodias so formadas, nas palavras de Bruno Kiefer (1923, p. 51), mediante figuras. De fato, Butt se refere a estas ligaduras como figurativas (p. 180).

Butt escreve a seguir, [as ligaduras longas em Bach] podem, por um lado, indicar um estilo legato pouco usual, por outro, um longo gesto que pode ser articulado de diversas maneiras.

Sobre o preldio BWV 995 para alade, diz Butt (1990, p. 180-181), apenas as ligaduras mais curtas podem indicar um legato real no alade [i.e. mais de uma nota soando com um ataque de mo direita]. [...] a ligadura dos compassos 22-25 do preldio em questo sugere uma execuo bastante livre para ser tocada de um s flego com o mnimo possvel de articulaes intermedirias. Claramente, este longo agrupamento de notas tem algo em comum com os conceitos de fraseado.

No exemplo 1, temos os compassos 22-25 do preldio da sute BWV 995 para alade, o mesmo trecho com as ligaduras indicadas pelo compositor na verso para violoncelo BWV 1011 e na tablatura de um alaudista annimo contemporneo de Bach.

 

Exemplo 1: J. S. Bach, Preldio BWV 1011, comp. 22-25. Verso para violoncelo (pentagrama superior), da transcrio para alade do compositor (BWV 995, pentagrama intermedirio) e de tablatura feita por um alaudista annimo do sculo XVIII (pentagrama inferior).

Sobre a tablatura em questo Tilman Hoppstock (na edio de 1994), nos diz: esta verso tem especial importncia na avaliao das prticas de transcrio dos alaudistas da poca. No podemos saber o nvel de satisfao que teria o compositor com as considerveis alteraes no preldio. [...] Em alguns lugares, alteraes foram feitas levando em considerao o som, sem preocupao com dificuldades tcnicas. impressionante que quase todas as notas ligadas no original so tocadas novamente na verso da tablatura. [...] uma interessante observao que as ligaduras no manuscrito de Bach usualmente indicam o fraseado, enquanto na tablatura do arranjador as ligaduras indicam exclusivamente instrues de como tocar, o que indica a articulao propriamente dita. (BACH, 1984, p. 18-19).

Na Ciaccona no encontramos ligaduras da dimenso do trecho discutido acima. As maiores no chegam a agrupar um compasso inteiro. No obstante, a Ciaccona est repleta de ligaduras com este mesmo significado, como veremos a seguir.

Ligaduras marcando mudana de harmonia

Nos compassos 49-51 da Ciaccona, temos ligaduras de oito notas. Estas ligaduras indicam um gesto musical que confere unidade aos trs compassos, de forma a clarificar o carter seqencial do trecho. Observamos ainda que as notas iniciais das ligaduras correspondem s fundamentais dos acordes subentendidos na progresso, contribuindo assim para a definio da harmonia.

 

Exemplo 2: Ciaccona BWV 1004, comp. 49-51 (urtext).

Keller (1955) afirma que, via de regra, Bach concebe o legato de uma maneira emocional, como sinal de tristeza, de dor serena, como no comeo da cantata n 46 (Schauet doch und sehet - Olha e v), na cantata n 21 (Seufzer, trnen, Kummer, Not - Suspiros, lgrimas, penas, aflio), na sinfonia de introduo Cantata n 11 (Weinen, Klagen -Chorar, lamentarse), na Cantata n 85 (Seht, was die Liebe tut - V o que faz o amor). Vrias vezes, agregada ao legato est a expresso piano, o que nos permite concluir que devem se interpretar suavemente tambm os movimentos lentos em legato da msica de cmara, das trio sonatas para rgo e do Concerto Italiano (1955, p. 100).

Nas edies para violo analisadas neste estudo (exemplo 3) no h indicaes de articulao que cumpram a funo da ligadura do original. Na edio de Segovia a definio harmnica reforada pelos baixos agregados (notas fundamentais dos acordes) em cada cabea de compasso. Segovia tambm usa ligados mecnicos de maneira no padronizada, possivelmente para conquistar o legato, ou talvez motivado puramente por uma facilidade digital.

 

Exemplo 3: Ciaccona BWV 1004, comp. 49-51. Edies para violo de Abel Carlevaro (pentagrama superior) e de Andrs Segovia (pentagrama inferior).

Carlevaro no usa ligados de mo esquerda para gerar o legato, o que sugere que o mesmo deve ser conquistado pela mo direita. Sobre esta variao diz Carlevaro (1989, p. 16), percebe-se uma mudana de atmosfera com respeito variao anterior, expressa em frases que vo conformando em cada compasso uma seqncia A-B, repetida nos compassos seguintes. Em cada um dos trs primeiros existem duas harmonias unidas por uma nota comum (re, d, sib, respectivamente).

Pela digitao de mo direita, percebe-se uma acentuao no primeiro e terceiro tempos de cada compasso, pelo uso do polegar (WOLFF, 2001, p. 16). As duas harmonias unidas por nota comum mencionadas por Carlevaro aparecem justamente no primeiro e terceiro tempos do compasso.

As duas edies para violino analisadas (exemplo 4) mantm as ligaduras do original. Plo (s/d) acrescenta um sinal de portato na nota inicial de cada compasso, de modo a separ-la das notas agrupadas pela ligadura. A indicao de piano coincide com a afirmao de Keller vista anteriormente. J Szeryng (1981) sugere um mezzo-piano para as notas sob a ligadura, alternando com piano nas ltimas trs notas do compasso. Ambos mudam a direo do arco na primeira nota do grupo ligado.

 

Exemplo 4: Ciaccona BWV 1004, comp. 49-51. Edies para violino de Enrico Polo (pentagrama superior) e de Henryk Szeryng (pentagrama inferior).

Ligaduras caracterizando mudana de afeto

J vimos acima como a articulao em Bach geralmente est ligada retrica, fazendo parte do decoratio, explicitando ou obscurecendo figuras e caracterizando afetos. As ligaduras bachianas tanto podem gerar um afeto pela unio-separao de grupos de notas, como podem reforar um afeto j existente. Segundo Butt (1990, p. 191), As ligaduras muitas vezes so usadas para evocar um Affekt particular. Nesses casos, elas confirmam algo que j est evidente nas notas, ou impem um Affekt particular em notas que poderiam ser interpretadas de diversas maneiras.

Vejamos agora como Bach, atravs da articulao, promove uma mudana de afeto. Entre os compassos 72-73 da Ciaccona temos o fim de uma variao e incio de outra.

 

Exemplo5: Ciaccona BWV 1004, comp. 72-73 (urtext).

A variao compreendida pelos compassos 65-72 (chamaremos de variao A) uma seqncia cuja figura geradora se caracteriza pela soma de duas clulas rtmicas primordialmente em semicolcheias (a) e uma em fusas (b). A variao posterior (compassos 73-80, doravante variao B) inicia com uma seqncia onde a figura bsica a soma de duas clulas rtmicas em fusas (a) e uma em semicolcheias (b), como vemos no exemplo 6.

 

Exemplo 6: J. S. Bach, Ciaccona BWV 1004, comp. 65-80 (urtext). A) variao compreendida entre os compassos 65-72; B) variao compreendida entre os compassos 73-80.

A semelhana das alturas e, principalmente, do ritmo entre ambas variaes ainda mais evidente quando comparadas com o resto da obra torna difcil a separao entre as mesmas. De fato, se ignorarmos as ligaduras assinaladas pelo compositor, veremos uma unidade de carter entre elas. Aqui a articulao o elemento responsvel pela clareza na separao das variaes.

Nas palavras de Butt (1990, p. 192), As ligaduras impem uma mudana de Affekt nos compassos 72-73 da Ciaccona BWV 1004. Aqui a figurao corrente virtualmente a mesma para os dois compassos. Contudo, o desaparecimento das ligaduras no ponto exato onde inicia a prxima variao de quatro compassos sugere que um contraste definido est implcito e que o executante no deve seguir ligando continuamente; a articulao torna-se um elemento de variao tcnica. [...] as ligaduras de Bach refletem o comando do compositor exercido sobre o intrprete, impondo um Affekt especfico em notas neutras.

Este argumento tambm defendido por Betancourt (1999, p. 389): Ligaduras longas ajudam a entender a direo de movimentos especficos, como aquelas dos compassos 72-73. [...] Veja que no compasso 73 Bach no pe ligadura. Isso indica uma mudana de affekt definindo este compasso como pertencente a uma nova variao.

Sobre as ligaduras longas da variao A, Betancourt diz que acentuando a primeira nota de cada grupo o pulso bsico de semnima pode ser mantido, obtendo no violo um efeito paralelo ao do violino. Este efeito sugerido por Betancourt j uma tradio de execuo da Ciaccona ao violo, podendo ser observado, por exemplo, nas gravaes de Williams (1975) e Bream (1992).

Williams, na variao A, liga as fusas duas a duas, tal como na edio Segovia. No entanto, Williams acentua as notas que iniciam as ligaduras da verso original, conforme sugerido por Betancourt. Na variao B, Williams diminui consideravelmente o nmero de ligados como forma de representar o novo affekt.

Bream usa sempre um ligado mecnico entre a primeira e a segunda nota de cada grupo, clarificando o desenho formado pelas ligaduras de Bach. Fazendo uso do staccato, ele separa as clulas mencionadas anteriormente, criando assim dois planos de afeto dentro de cada uma das variaes em questo: o plano das figuras lentas em staccato e o plano das figuras rpidas em legato. Desta forma ele unifica todo o trecho entre os compassos 65-76 formando uma s variao.

Como j mencionamos, em sua edio Segovia liga as fusas em grupos de duas notas (exemplo 7). A respeito das ligaduras sobre vrias notas diz Roselli (1990, p. 46): Esse um dos problemas mais delicados para o transcritor, devendo fazer frente carncia, por assim dizer, natural do nosso instrumento [violo]. Quase sempre Segovia resolve o problema ligando as notas de uma escala duas a duas, obtendo assim um efeito satisfatrio se no se acentuam muito as notas internas [...].

Tal qual Bream, Segovia (1987), unifica um trecho maior como uma grande variao de 12 compassos (compassos 65-76). Contudo, usa a articulao de forma a seccionar o trecho em trs partes. Na primeira, compassos 6568, Segovia mantm o legato para as duas figuras (fusas e semicolcheias); na segunda, compassos 69-72, indica legato nas figuras em fusas e staccato nas figuras em semicolcheias; e, na terceira, compassos 73-76, indica legato nas fusas e portato nas semicolcheias. As indicaes de dinmica que acompanham estas articulaes sugerem um crescendo ao longo dos 12 compassos, contraposto em seguida por um piano suave (nas palavras de Segovia) no compasso 77. Este entendimento da forma caracterstico da tradio romntica de execuo da Ciaccona. Na verso orquestral de Stokowski (1992) a entrada da suposta nova variao, no compasso 77, caracterizada por uma mudana substancial de instrumentao. Aps um tutti das cordas, esta sesso tocada apenas por flauta e obo que se revezam na melodia e fagote.

 

Exemplo 7: J. S. Bach, Ciaccona BWV 1004, comp. 65-80. Edio para violo de Andrs Segovia.

Nas escalas descendentes dos compassos 65-68 Fernndez (1987) liga as fusas duas a duas. J nas escalas ascendentes dos compassos 69-71, Fernndez utiliza ligaduras de duas e trs notas, coincidindo com as mudanas de corda. Na variao B, apenas um ligado utilizado, no terceiro tempo do compasso 76. Assim, tal qual na verso para violino, aqui o uso ou no de ligados mecnicos diferencia as variaes A e B.

Concluso

Atravs da anlise comparativa de edies e gravaes, auxiliados por referenciais tericos, vimos como as ligaduras esto relacionadas a elementos como a harmonia, o ritmo e a representao dos afetos. Admite-se assim a multi-funcionalidade das ligaduras na msica de Bach.

Diferentemente da maioria dos compositores do sculo XIX, as ligaduras longas so raras na obra de Bach. Isto decorre de uma diferena bsica de construo meldica. Na msica barroca, em geral, a melodia composta por figuras que raramente compreendem mais de um compasso. Portanto, a articulao indicada por Bach est sempre relacionada s figuras referidas, ou a gestos musicais que compreendem as mesmas, e no a uma frase musical propriamente dita.

Esperamos que as reflexes contidas no presente trabalho venham a contribuir com o estudo da msica de Bach e a elucidao de questes interpretativas pertinentes mesma.

 

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[1] Todos os conceitos musicais relacionados retrica originaram-se na extensiva literatura sobre oratria e retrica dos escritores da Grcia e Roma antigas, principalmente, Aristteles, Ccero e Quintiliano. (BUELOW, 1980, p. 793).

[2] Segundo Buelow (1980, p. 800): Como resultado de suas intrincadas relaes com as doutrinas retricas, a msica barroca tomou como seu objetivo esttico primrio a obteno de uma unidade estilstica baseada em abstraes emocionais chamadas de Afetos. Um afeto (Affekt em alemo, do grego pathos e do latim affectus) consiste em um estado emocional ou paixo racionalizada. Aps 1600, a representao dos Afetos tornou-se a necessidade esttica da maioria dos compositores barrocos, sejam quais fossem suas nacionalidades, e a base fundamental de numerosos tratados.

[3] A transformao mais complexa e sistemtica do conceito de retrica em uma equivalncia musical origina o decoratio da teoria da retrica. Na oratria, cada orador modifica o seu comando das regras e tcnicas do decoratio de forma a embelezar suas idias com uma imagem retrica e, infundir o seu texto/discurso com uma linguagem apaixonada. O significado disso foi o amplo conceito sobre as figuras de linguagem, afirma Buelow (1980, p. 794).

[4] Segundo Fernandez (2003, p. 81), a Figurenlehre, ou teoria das figuras, se refere a uma repertrio de gestos musicais tpicos do perodo barroco, um repertrio mais ou menos codificado que tradicionalmente relacionado com o aspecto retrico da msica. Por definio, esta uma compilao de gestos musicais usualmente e quase universalmente empregados. Neste caso, h uma regra similar quela dos tropi retricos, isto , figuras comuns do discurso escrito ou falado.