Artigo publicado na Em Pauta - Revista do Programa de Ps-Graduao em Msica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 14, n. 22, Porto Alegre, 2003. Verso em ingles publicada em Guitar Review, n. 123, Nova Iorque, 2001.

 

O USO DA MSICA POLIFNICA VOCAL RENASCENTISTA NO REPERTRIO DO ALADE E DA VIHUELA

Daniel Wolff

 

Introduo

Exemplos de re-criao, do uso de materiais pr-existentes como fonte para uma nova obra de arte, so freqentes na histria da msica. Do uso do cantocho na idade mdia e renascena ao neoclassicismo do sculo vinte, compositores estiveram sempre dispostos a retrabalhar a msica de pocas passadas sua maneira.

No que concerne msica instrumental, exemplos de arranjos de obras polifnicas vocais para instrumentos de teclado aparecem j no comeo do sculo quatorze. J nos instrumentos de corda pulsada, devido sua ento limitada tcnica de execuo, arranjos semelhantes s apareceram dois sculos mais tarde. Porm, ao longo do sculo dezesseis, e at os primeiros anos do sculo seguinte, ocorre uma extensa produo de arranjos de obras polifnicas vocais, tanto seculares como religiosas, para o alade e a vihuela.

Enquanto a vihuela era o instrumento preferido na Espanha, o alade predominava no resto da Europa. Apesar das diferenas na afinao e construo, a tcnica de execuo e a escrita instrumental do alade e da vihuela eram muito semelhantes. Portanto, poucas distines sero feitas aqui entre ambos os instrumentos. Mais bem, o foco deste artigo recair nos aspectos similares entre os dois no concernente aos arranjos de msica vocal.

A popularidade do alade e da vihuela durante os perodos renascentista e barroco era compartida com outro instrumento similar: a guitarra. Haviam dois tipos de guitarra, um com quatro e outro com cinco pares de cordas chamados cursos. Os cursos eram afinados em unssono ou em oitavas. O repertrio e a tcnica da guitarra, especialmente da de quatro cursos, eram mais simples que os do alade e da vihuela. A maioria das obras eram escritas no estilo battente, que consistia em acordes batidos (rasgueados) e era utilizado primordialmente no acompanhamento de canes simples. Mesmo as obras escritas no estilo punteado (pulsado, i.e. dedilhado, na Itlia chamado de estilo pizzicato), mais elaborado que o estilo battente, possuam uma textura bem menos contrapontstica do que a encontrada no repertrio alaudstico e vihuelstico. Tal situao levou ao surgimento de um preconceito contra a guitarra nos crculos musicais mais srios, como atesta o relato a seguir do diarista britnico Samuel Pepys, descrevendo seu encontro com o famoso guitarrista italiano Francesco Corbetta (c.1615-1681):

5 de agosto, 1667

Aps terminado [meu encontro] com o Duque de York, e saindo pelo seu quarto de vestir, eu l vi Signor Francisco afinando sua guitarra, e Monsieur de Puy, que o fez tocar para mim de maneira admirvel to bem que perturbou-me o fato de que todo o seu esforo estava dedicado a um instrumento to ruim.[1]

 

After done with the Duke of York, and coming out through  his dressing room, I there spied Signor Francisco tuning his guitar, and Monsieur the Puy, with him who did make him play to me which he did most admirablyso well that I was mightily troubled that all that pains should have been taken upon so bad an instrument.[2]

Conseqentemente, a guitarra possua um repertrio parte, distinto daquele dos outros instrumentos de corda pulsada. As publicaes de msica para guitarra continham primordialmente obras originais para este instrumento, enquanto arranjos de peas polifnicas vocais eram raros. Certamente, a natureza limitada do instrumento foi uma importante razo para este fato, uma vez que as possibilidades de execuo polifnica eram restritas, especialmente na guitarra de quatro cursos. Por conseguinte, a guitarra ser excluda do presente artigo. A discusso focar ento as origens das transcries de obras vocais para alade e vihuela, bem como os procedimentos tcnicos utilizados no processo de transcrio. Exemplos de obras de Josquin des Prs arranjados por renomados alaudistas e vihuelistas serviro para demonstrar na prtica os tpicos discutidos.

 

Circunstncias Histricas

Os arranjos de obras vocais para instrumentos de teclado ou de cordas dedilhadas realizados durante o perodo renascentista eram chamados de intabulaes. As intabulaes, escritas no sistema de notao de tablatura, provavelmente destinavam-se inicialmente ao dobramento instrumental das partes vocais na performance. O fato de que cada parte (voz) das obras originais eram escritas em livros separados (part books), em vez de em uma partitura nica contendo todas as vozes, demonstra a praticidade de reduzir todas as vozes uma nica pauta de tablatura. De fato, este pode muito bem ter sido o propsito das primeiras intabulaes.

O primeiro exemplo conhecido de intabulao aparece no Manuscrito Robertsbridge, de c.1320. Nele, encontram-se dois motetos do Roman de Fauvel arranjados para teclado, escritos em uma combinao de partitura e letras. Quanto a intabulaes para alade, o primeiro exemplo data somente de 1507, no Intabulatura de Lauto: Libro Primo de Francesco Spinacino, publicado por Petrucci. Este no apenas o primeiro exemplo de intabulao para alade, como tambm o primeiro livro de msica para alade a ser impresso. Petrucci posteriormente publicou dois outros livros para alade com obras de Spinacino, alm de um quarto livro com obras do alaudista milans Joan Ambrosio Dalza em 1508. O fato de que as intabulaes para alade surgiram quase duzentos anos aps aquelas para teclado decorre de mudanas na construo e tcnica de execuo do alade ocorridas no sculo quinze, as quais expandiram as possibilidades polifnicas do instrumento. Incluem-se aqui o abandono da palheta em favor da execuo com os dedos da mo direita, bem como a adio de uma sexta corda que expandiu o mbito do instrumento no registro grave.

Contudo, a impossibilidade de sustentao de notas longas no alade ainda representava um obstculo para a transcrio de obras vocais. A soluo encontrada para tal problema foi o uso de ornamentao, substituindo as notas longas da obra original por outras de menor durao, uma prtica tambm empregada nas intabulaes para instrumentos de teclado. As texturas resultantes levaram ao desenvolvimento de um estilo de composio prprio da msica instrumental, diferente do j estabelecido estilo vocal (voltaremos a tratar deste aspecto mais adiante). O Exemplo 1, extrado do The New Oxford History of Music[3], ilustra o uso da ornamentao em intabulaes, atravs da comparao do incio do arranjo de Spinacino para o Christie da Missa Si Dedero de Obrecht com a verso original.

Exemplo 1

Tratemos agora da vihuela. Sobrevivem apenas sete livros dedicados exclusivamente msica para vihuela, todos publicados no curto espao de tempo de quarenta anos (adicionalmente, existem colees de obras para diversos instrumentos contendo poucas peas para vihuela). Em ordem cronolgica de publicao, os sete livros so:

1) El Maestro, de Luis Miln (Valencia, 1536);

2) Los Seys Libros del Delphin de Msica, de Luys de Narvez (Valladolid, 1538);

3) Tres Libros de Msica en Cifras para Vihuela, de Alonso Mudarra (Sevilha, 1546);

4) Silva de Sirenas, de Enriquez de Valderrbano (Valladolid, 1547);

5) Libro de Msica de Vihuela, de Diego Pisador (Salamanca, 1552);

6) Orphenica Lyra, de Miguel de Fuenllana (Sevilha, 1554);

7) El Parnasso, de Esteban Daza (Valladolid, 1576).

Todos foram publicados na Espanha onde, como j foi dito, a vihuela gozava de maior preferncia que o alade. Exceto pelo livro de Miln, todos incluem intabulaes de obras vocais alm de composies originais para vihuela.

O repertrio preferido para intabulaes, tanto no alade como na vihuela, inclua a maioria dos gneros vocais em voga, tais como missas, motetos, canes e madrigais. Um grande nmero de compositores tiveram suas obras adaptadas em intabulaes, mas percebe-se uma predileo pela escola Franco-Flamenga, como explica Zayas:

 

A linguagem musical da frana j tinha se tornado conhecida universalmente na idade mdia, mas nunca tanto como quando surgiu a famosa escola Franco-Flamenga: os compositores franceses estavam na vanguarda com gnios universais como Josquin des Prs e Clment Janequin. Os msicos espanhis conheciam bem o estilo de escrita destes polifonistas [franceses], j durante o sculo quinze portanto muito antes dos Hapsburgs dispersarem a capela real dos Reis Catlicos para substitu-la pelos msicos flamengos de Carlos I.

 

The musical language of France had already become universally known during the Middle Ages, but never as much as when the famous Franco-Flemish school appeared: the purely French composers were in the forefront with such universal geniuses as Josquin des Prs and Clment Janequin.  The Spanish musicians were very conscious of the style these polyphonists wrote in, already during the fifteenth centurytherefore long before the Hapsburgs came and dispersed the royal chapel of the Catholic Kings to replace it with the Flemish musicians of Charles I.[4] 

Entretanto, os vihuelistas e alaudistas no se restringiram apenas a estes dois compositores. Obras de autores de destaque como Gombert, Obrecht, Willaert, Sermisy e Arcadelt, para citar apenas alguns, serviram como base para a grande quantidade de intabulaes produzidas durante os perodos renascentista e barroco.

Como exposto at aqui, intabulaes de obras polifnicas vocais foram feitas em grande escala, primeiro para instrumentos de teclado e subsequentemente para instrumentos de corda pulsada. Vimos tambm que, devido natureza peculiar da execuo instrumental, alguns ajustes eram necessrios na transferncia de uma obra vocal para o meio instrumental. Vamos agora examinar em maior detalhe em que consistia este processo de adaptao, bem como destacar a importncia destas intabulaes para os instrumentistas e pesquisadores atuais.

 

A Importncia das Intabulaes

Como mencionado acima, as intabulaes eram escritas em tablatura. O sistema de tablatura consistia de quatro a seis linhas paralelas (dependendo do instrumento), similar ao pentagrama moderno, sobre as quais eram agregadas letras ou nmeros para indicar o posicionamento dos dedos da mo esquerda.[5] Contudo, diferentemente da notao em partitura, na tablatura cada linha representa uma corda especfica do instrumento. Por exemplo, a linha superior pode representar a corda mais aguda, a linha abaixo desta a segunda corda e assim sucessivamente (em alguns pases encontramos um ordenamento inverso, i.e., a linha superior representava a corda mais grave). Tambm de acordo com o pas em questo, letras ou nmeros indicavam os trastes nos quais o executante deveria colocar seus dedos. Assim, a corda solta era representada por um zero ou pela letra a, o primeiro traste pelo nmero 1 ou pela letra b, etc. O ritmo era indicado por hastes colocadas acima da tablatura.

Comparada com a partitura moderna, a tablatura oferece tanto vantagens quanto desvantagens. Primeiramente, preciso entender que a tablatura um sistema de notao de ao: ela mostra ao executante o que fazer (i.e. onde colocar os dedos) para alcanar o resultado musical desejado, mas ela no mostra a msica propriamente dita. A partitura, ao contrrio, um sistema de notao de resultado: ela mostra o resultado musical, mas cabe ao executante a tarefa de descobrir o que fazer fisicamente com o seu instrumento para chegar a este resultado. Como em instrumentos de corda pulsada uma mesma nota pode ser executada em diferentes cordas, a tablatura tem a vantagem de indicar com preciso a corda na qual cada nota deve ser tocada. Porm, ela carece de um mecanismo para indicar a conduo de vozes e a durao exata de cada nota. A tablatura meramente indica o intervalo de tempo entre uma nota e a nota seguinte, sem levar em conta a qual das vozes da trama contrapontstica elas pertencem. Por esta razo, ao transferir uma intabulao de tablatura para partitura, de suma importncia estudar a obra vocal original na qual foi baseada a intabulao, a fim de evitar possveis equvocos quanto conduo de vozes e durao das notas.

Contudo, a tablatura tem a vantagem de indicar com preciso os acidentes (sustenidos e bemis). sabido que durante a idade mdia e renascena os acidentes eram freqentemente omitidos nas edies de msica vocal. Assumia-se que o cantor proporcionaria os acidentes necessrios de acordo com as regras da musica ficta. As intabulaes de obras vocais servem portanto como preciosos tratados de prtica de performance, ao mesmo tempo documentando a transio do sistema modal para o tonal. Segundo Trend:

 

O valor da tablatura reside no fato de que ela era a forma mais acurada de notao musical existente no sculo dezesseis. A msica vocal daquela poca, tanto a secular como a sagrada, era escrita em partes separadas;  cada voz, e as vezes cada cantor, possua  um part book separado, ou ento (como no caso dos imensos livros corais colocados sobre uma estante giratrioo facistol das catedrais espanholas) precisava manter os olhos fixos em um determinado canto da pgina. A msica em tablatura, ao contrrio, impressa em grade; todas as partes podem ser lidas juntas.

Adicionalmente, na msica vocal do sculo dezesseis, os acidentes eram geralmente deixados discrio dos cantores, que os proviam de acordo com certas convenes, bem conhecidas dos msicos em um determinado perodo, porm mudando ao longo dos anos.  Na msica impressa em tablatura h raramente qualquer dvida sobre um acidente; a nota produzida ao colocar um dedo no lugar indicado a nota correta; um sustenido ou um bemol no so indicados por smbolos especficos, mas por um nmero diferente, uma vez que [a nota] seria tocada em um traste diferente e com um dedo diferente do que se fosse uma nota natural [i.e. sem acidente].

Percebe-se ento que a msica preservada em tablatura para alade (ou deveria ser) um registro mais acurado da inteno do compositor, e de como suas composies soavam, do que os part-books de msica vocal. Os vihuelistas que se seguiram a Luis Miln transcreveram um [grande] nmero de madrigais e composies sacras para o seu instrumento; e atravs destas transcries pode-se ver quais notas sofriam alterao cromtica e onde ocorriam os sustenidos e bemis, mesmo se a conduo das partes individuais no pode ser facilmente determinada.

Estes fatos so de grande importncia na histria da msica. Durante o sculo dezesseis houve uma transio gradual dos modos antigos para as modernas [escalas] maior e maior. A transformao das velhas tonalidades na tonalidade mais slida dos sculos seguintes foi em grande parte determinada pela msica escrita para alade, cuja qualidade meldica comeou a fazer do acorde um elemento essencial da construo musical.

 

The interesting value of lute tablature lies in the fact that in the sixteenth-century it was the most accurate form of musical notation in existence.  The vocal music of the time, both secular and sacred, was written in separate parts; each voice, and sometimes each singer, had either a separate part-book to sing from, or else (as in the case of the immense choir-books which stood in a revolving lecternthe facistol of Spanish cathedrals) had to keep his eyes fixed on a particular corner of the page.  The music in tablature, on the contrary, is printed in score; all the parts may be read together.

 

Again, in sixteenth-century vocal music, the accidentals were generally left to the discretion of the singers, who supplied them according to certain conventions, well known to every musician at a particular time, but changing as the years went by.  In music printed in tablature there is seldom any question about an accidental; the note that would be produced by putting down the finger in the place indicated is the right note; whether it is a flat or a sharp is not shown by any special sign, but by [a] different number, since it would be played on a different fret and with a different finger from the natural note.

 

It will be seen, then, that music preserved in lute tablature is (or should be) a more accurate record of what the composer intended, and how his compositions sounded, than is to be found in the part-books of vocal music.  The vihuelistas who followed Luis Miln transcribed a number of madrigals and church compositons for their instrument; and from these transcriptions can be seen which notes underwent chromatic alteration and where the sharps and flats went, even if the actual run of the individual parts is not allways easy to determine.

 

These facts are of great importance in musical history.  During the sixteenth century there was a gradual transition from the ancient modes to the modern major and minor [scales].  The transformation of the older tonalities towards the firmer tonality of succeeding centuries was largely determined by the music writen for the lute, the melodic quality of which began to make the chord an essential element of musical construction.[6]

interessante ressaltar que, enquanto a prtica de suprir acidentes no indicados pelo compositor ocorria especialmente em pontos cadencias tais como finais de frases, ou ento servia para evitar intervalos dissonantes como o trtono, em vrias intabulaes encontramos exemplos de acidentes agregados em passagens nas quais estes no seriam realmente necessrios. Tais casos podem ser decorrentes do gosto particular do arranjador, ou talvez representem diferenas na prtica de performance entre a poca e localizao geogrfica do compositor e do arranjador. O exemplo abaixo, extrado da Gloria da Missa Faisant Regretz de Josquin, transcrito por Mudarra, servir como ilustrao.[7]

Exemplo 2

A adio de acidentes, no entanto, no estava diretamente envolvida no processo da elaborao do arranjo. Mesmo que tal procedimento implicava um juzo crtico da parte do arranjador, acidentes no eram agregados com o propsito de adaptar a obra original para as caractersticas dos instrumentos de corda pulsada. Tampouco eram eles includos com a inteno de demonstrar as prticas de performance correntes (apesar de servirem aos estudiosos modernos para este propsito). Podemos, at certo ponto, atribuir a adio de acidentes s particularidades do sistema de notao da tablatura, no qual as notas so tratadas da mesma forma independentemente de serem ou no alteradas por um sustenido ou um bemol. Por outro lado, o processo da elaborao do arranjo envolvia tcnicas muito mais complexas, s vezes resultando em alteraes estruturais da obra original, como veremos a seguir.

 

O Processo de Transcrio

Os procedimentos tcnicos envolvidos no arranjo de obras vocais para vihuela e alade eram em grande parte padronizados, independente do arranjador e seu pas de origem. Um aspecto que todo arranjador precisava considerar era a impossibilidade de executar todas as melodias da trama contrapontstica original, especialmente em obras para quatro ou mais vozes. De acordo com Brown:

 

A tcnica da intabulao manteve-se essencialmente inalterada ao longo do sculo [dezesseis]. Em um arranjo ideal, segundo Adrian le Roy e Vincenzo Galilei, que descrevem o processo em tratados de execuo do alade, o executante mantm [no arranjo] tanto da msica vocal quanto seu instrumento permite, apesar de que na prtica os arranjadores s vezes omitiam uma voz ou readaptavam a escrita polifnica.

 

The technique of intabulation remained essentially the same throughout the [sixteenth] century.  In an ideal arrangement, according to Adrian le Roy and Vincenzo Galilei, who both describe the process in treatises on lute playing, the performer takes over as much of the vocal music as the technique of his instrument allows, although in practice the arrangers sometimes omitted one voice or rearranged the part writing.[8]

Freqentemente a simples omisso de uma voz de menor importncia possibilitava a execuo de uma passagem impraticvel, apesar de que alguns casos demandavam mudanas mais substanciais, e as partes vocais precisavam ser redistribudas para permitir sua execuo no alade ou vihuela. Contudo, a voz a ser omitida poderia ter ocasionalmente algumas notas indispensveis para a estrutura vertical de um acorde; em tais casos, duas vozes poderiam ser combinadas em uma nova melodia, contendo as notas mais importantes de cada uma das vozes originais, resultando em uma nova estrutura polifnica. O exemplo 3 contm outro trecho da transcrio de Mudarra da Gloria da Missa Faisant Regretz de Josquin. Observe como Mudarra combinou as duas vozes internas em uma nova melodia, usando uma nota de cada voz alternadamente, eliminando assim os dobramentos de oitava e reduzindo a passagem a uma textura de trs vozes.

Exemplo 3

Alm da inabilidade de manejar diversas melodias simultneas confortavelmente, outro problema encarado pelos intabuladores eram as notas de longa durao, como explica Trend:

 

Luis Miln e os primeiros alaudistas pensavam inteiramente em termos de contraponto, e no em termos de harmonia. Eles encaravam a msica como formada por uma quantidade de vozes movendo horizontalmente; eles no pensavam nela verticalmente como uma sucesso de acordes. Violas e instrumentos de sopro podiam ocupar o lugar das vozes (como de fato o faziam freqentemente) e fazer msica da mesma maneira; eles podiam tocar todas as notas cantadas pelas vozes, e sustent-las pela mesma durao. Os primeiros rgos podiam fazer a mesma coisa; mas os virginais e o cravo, devido sua inabilidade de sustentar uma nota aps ela ter sido tocada, mais bem sugeriam do que copiavam o efeito de vozes cantando em conjunto.

Isto foi um dos comeos do estilo instrumental em msica distinto do estilo vocal, e nesta diferenciao o alade, a vihuela e a guitarra foram pioneiros. Eles nem podiam tocar todas as notas cantadas pelas vozes, muito menos sustent-las, e portanto, quando uma composio para vozes era transferida para o alade, ela no era reproduzida, mas somente sugerida.

 

Luis Miln and the earlier lutenists thought entirely in terms of counterpoint, and not in terms of harmony.  They regarded music as made by a number of voices moving horizontally; they did not think of it vertically as a succession of chords.  Viols and wind-instruments could take the place of voices (as indeed they frequently did) and make music in the same way; they could play all the notes sung by the voices, and hold them for as long as the voices themselves.  The early organs could do the same thing; but the virginals and clavichord, through their inability to sustain a note after it had been struck, were suggesting rather than copying the effect of voices singing together.

This was one of the beginnings of the instrumental style in music as distinct from [the] vocal style, and in this differentiation the lute, the vihuela and the guitar led the way.  They could not even play all the notes sung by voices, much less sustain them, and thus, when a composition for voices was transferred to the lute, it was not reproduced, but only suggested.[9]

Uma possvel soluo para sugerir o efeito de notas sustentadas era repetir notas longas ou ligadas, tornando-as audveis novamente. Contudo, este procedimento resultaria em uma sucesso montona de notas repetidas. Portanto, fez-se uso de outro recurso: a adio de ornamentao. De fato, j vimos, no exemplo 1, que alaudistas como Spinacino e Dalza agregavam ornamentos s suas intabulaes j na primeira dcada do sculo dezesseis.

Geralmente consistindo de figuraes tpicas como trinos, escalas curtas e grupetos, a quantidade de ornamentao variava de um autor para outro, e s vezes mesmo em diferentes arranjos feitos pelo mesmo autor. Repetidos sempre que possvel, estes clichs de ornamentao formavam uma superestrutura, por assim dizer, sobre a pea vocal, uma rede de motivos completamente independente da concepo original.[10] Freqentemente, o resultado era um movimento constante de colcheias e semicolcheias, obscurecendo os contornos da obra original sob uma srie de fragmentos escalares. Mas os grandes virtuosos do sculo [dezesseis], como Valentin Bakfark e Francesco da Milano, foram alm de msicos de menor porte ao transformar a composio original em uma pea instrumental idiomtica e virtuosstica, atravs de uma profuso de escalas, trinos e grupetos variados constantemente.[11] Tal o caso do alaudista francs Adrian le Roy, cuja transcrio da cano Je nay point plus daffection, de Sermisi, inclumos a seguir. Observe como le Roy, mesmo ornamentando fortemente a chanson de Sermisi, consegue manter os contornos meldicos originais claramente audveis.

Exemplo 4

No entanto, o recurso da ornamentao no era sempre utilizado  de forma to massiva como no exemplo acima. O arranjo de Fuenllana para o Pleni da Missa Hercules Dux Ferrariae de Josquin, por exemplo, no faz uso algum de ornamentao. Ao contrrio, a verso para vihuela completamente fiel ao original, com exceo de algumas notas repetidas e a transposio para uma tonalidade mais apropriada s caractersticas daquele instrumento.

portanto importante ter em mente que a arte da ornamentao, apesar de utilizada aqui com o objetivo de adaptar uma obra para um meio distinto do qual ela foi composta, implicava at certo ponto em um aspecto composicional, em vez de ser meramente uma ferramenta do processo de transcrio. Ou seja, uma vez que o arranjador percebia a necessidade da ornamentao para substituir as notas longas da obra original, a idia de que ele supriria ornamentao de sua prpria autoria abria diversas possibilidades para exercitar suas habilidades composicionais, com a partitura original servindo como uma base sobre a qual ele poderia desenvolver livremente suas idias. Para ilustrar diversos enfoques possveis de ornamentao, o exemplo 5, extrado da edio de Chiesa da obra para alade de Francesco da Milano[12], compara trs intabulaes para alade do Pater Noster de Josquin, realizadas por diferentes arranjadores.

Exemplo 5

 

Podemos portanto afirmar que o estilo de ornamentao estava diretamente relacionado com as composies originais do arranjador. Por exemplo, nas fantasias para vihuela de Luys de Narvez encontramos raramente sees homofnicas ou passagens escalares. Seu estilo era puramente contrapontstico, e isto refletido em suas intabulaes. Um pequeno trecho do seu arranjo da cano Mille Regretz de Josquin aparece no exemplo 6.

Exemplo 6

Observe como a ornamentao de Narvez segue um estilo imitativo, correspondendo s imitaes da cano original. Conseqentemente, a ornamentao passa de uma voz para outra, resultando em uma textura mais equilibrada e variada. A personalidade musical de Narvez tambm aparente pela riqueza do tratamento harmnico. No penltimo compasso, a voz tenor contm as notas f sustenidosolf sustenidosol em semnimas, todas consonantes com a melodia do baixo. Narvez transforma o ltimo sol do tenor em uma dissonncia, ao atrasar em um tempo a nota sol do baixo. Alteraes como esta no decorriam de uma necessidade de adaptao instrumental, mas sim constituam contribuies criativas do arranjador.

Voltando ao tema da ornamentao, um enfoque inverso era ocasionalmente empregado por Francesco da Milano. Em seu arranjo de Fort se Lament de Josquin (exemplo 7), vemos nos primeiros trs compassos os procedimentos habituais de ornamentao e notas repetidas. Mas no quarto compasso, da Milano faz o oposto ao desornamentar a verso original, apesar de que a passagem seria facilmente executvel no alade sem quaisquer alteraes.

Exemplo 7

interessante ressaltar que em um gnero vocal, a missa pardia, encontramos procedimentos tcnicos similares aos utilizados nas intabulaes. Assim como nestas, a redistribuio da conduo de vozes e a adio de ornamentao eram recursos comuns nas missas pardias. Mas aqui, as mudanas feitas na obra original procediam do desejo do compositor de variar (ou mesmo incrementar) uma obra pr-existente, enquanto que nas intabulaes elas serviam o propsito prtico de contornar limitaes instrumentais. Uma exceo a este caso eram as glosas.

Um termo freqentemente utilizado por msicos espanhis do sculo dezesseis, glosas referia-se a variaes sobre um hino ou tema religioso. Missas de autores franco-flamengos freqentemente serviam como base para glosas de compositores como Mudarra, Valderrbano e Venegas de Henestrosa. O Tratado de Glosas de Diego Ortiz, publicado em 1553, lista diversos padres de ornamentao para uso na escrita de glosas. No surpresa que estes mesmos padres so tambm so encontrados em intabulaes instrumentais da poca. Outro tipo de variaes muito utilizado pelos vihuelistas eram as diferencias, uma forma similar s glosas, porm baseada em uma melodia ou seqncia de acordes secular, como Conde Claros e Gurdame las Vacas. A distino entre os dois termos, no entanto, no era extremamente precisa, pois Narvez chama de diferencias suas variaes sobre o hino O Gloriosa Domina.

Finalmente, um ltimo aspecto referente      contribuio das intabulaes para o surgimento de um estilo puramente instrumental merece meno. J vimos que as missas pardia utilizavam procedimentos comuns aos das intabulaes. Contudo, a missa pardia nem sempre era uma mera adaptao da pea na qual ela era baseada. Ao contrrio, com freqncia apenas os temas e motivos da composio original eram preservados, e sobre estes era criada uma obra polifnica totalmente nova. Similarmente, algumas intabulaes para vihuela, especialmente as de Mudarra e Fuenllana, contrastavam radicalmente com os originais vocais, dos quais eram preservados apenas os compassos iniciais. O restante da intabulao era desenvolvido em estilo de fantasia, novamente baseado nos temas e motivos extrados da obra original. Fuenllana foi mais adiante ao seguir algumas de suas intabulaes com fantasias originais baseadas nos mesmos motivos, as quais ele se referia como fantasia que la remeda (que a imita) ou que se sigue (que se segue).

 

Concluso

Como vimos na discusso acima, a arte da intabulao resultou em um vasto repertrio de peas para alade e vihuela, cuja importncia para o estudo da prtica de performance pode ser comparada a tratados contemporneos sobre o assunto. Igualmente importantes como uma valiosa fonte para pesquisas histricas, as intabulaes documentaram a transio do sistema modal para o tonal, ao mesmo tempo que impulsionaram o surgimento do estilo  instrumental.

Executantes de hoje em dia, seja seu instrumento o alade, a vihuela ou mesmo o violo moderno, se beneficiaro certamente deste precioso legado, uma grande parte do qual continua inexplorada. O autor espera que o presente estudo instigar o leitor a realizar pesquisas subsequentes sobre o assunto, trazendo ateno dos executantes e pesquisadores da atualidade este atraente repertrio.

 

 

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Zayas, Rodrigo de.  The Music of the Vihuelists and its Interpretation. Guitar Review 38 (Summer 1973): 10-22.

 

  2003  Copyright de Daniel Wolff. Todos os direitos reservados.



[1] Todas as citaes deste artigo foram traduzidas para o portugus pelo autor.

[2] James Tyler,  The Early Guitar: A History and Handbook (Oxford:  Oxford Univ. Press, 1980), 45.

[3] Dom Anselm Hughes e Gerald Abraham, ed, The New Oxford History of Music (Londres:  Oxford Univ. Press, 1960), III:442.

[4] Rodrigo de Zayas, The Music of the Vihuelists and its Interpretation, Guitar Review 38, (Summer 1973): 11.

[5] Um sistema semelhante ainda persiste nos dias de hoje em publicaes de peas populares e/ou jazzsticas para violo e guitarra eltrica.

[6] J. B. Trend, Luis Milan and the Vihuelists (Oxford: Oxford Univ. Press, 1925), 38-40.

[7] No intuito de facilitar a comparao entre a intabulao e o original vocal, neste e em alguns dos prximos exemplos a verso vocal foi reduzida a dois pentagramas e transposta para a tonalidade da transcrio. As intabulaes foram transcritas para a notao do violo moderno.

[8] Howard Mayer Brown, Music in the Renaissance (Englewood, NJ: Prentice Hall, 1976), 261.

[9] Trend, op. cit., 31-32.

[10] Brown, op. cit., 262.

[11] Ibid, 262-63.

[12] [12] Francesco da Milano, Opera Completa per Liuto, ed. Ruggero Chiesa (Milano: Edizioni Suvini Zerboni, 1971), II:ix.