Artigo publicado na Em Pauta - Revista do Programa de Ps-Graduao em Msica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 14, n. 22, Porto Alegre, 2003. Verso em ingles publicada em Guitar Review, n. 123, Nova Iorque, 2001.
O USO DA MSICA POLIFNICA VOCAL RENASCENTISTA NO REPERTRIO DO ALADE E DA VIHUELA
Introduo
Exemplos
de re-criao, do uso de materiais pr-existentes como fonte para uma nova obra
de arte, so freqentes na histria da msica. Do uso do cantocho na idade
mdia e renascena ao neoclassicismo do sculo vinte, compositores estiveram
sempre dispostos a retrabalhar a msica de pocas passadas sua maneira.
No que
concerne msica instrumental, exemplos de arranjos de obras polifnicas
vocais para instrumentos de teclado aparecem j no comeo do sculo quatorze.
J nos instrumentos de corda pulsada, devido sua ento limitada tcnica de
execuo, arranjos semelhantes s apareceram dois sculos mais tarde. Porm, ao
longo do sculo dezesseis, e at os primeiros anos do sculo seguinte, ocorre
uma extensa produo de arranjos de obras polifnicas vocais, tanto seculares
como religiosas, para o alade e a vihuela.
Enquanto
a vihuela era o instrumento preferido na Espanha, o alade predominava no resto
da Europa. Apesar das diferenas na afinao e construo, a tcnica de
execuo e a escrita instrumental do alade e da vihuela eram muito
semelhantes. Portanto, poucas distines sero feitas aqui entre ambos os
instrumentos. Mais bem, o foco deste artigo recair nos aspectos similares
entre os dois no concernente aos arranjos de msica vocal.
A popularidade do alade e da vihuela durante os perodos renascentista e barroco era compartida com outro instrumento similar: a guitarra. Haviam dois tipos de guitarra, um com quatro e outro com cinco pares de cordas chamados cursos. Os cursos eram afinados em unssono ou em oitavas. O repertrio e a tcnica da guitarra, especialmente da de quatro cursos, eram mais simples que os do alade e da vihuela. A maioria das obras eram escritas no estilo battente, que consistia em acordes batidos (rasgueados) e era utilizado primordialmente no acompanhamento de canes simples. Mesmo as obras escritas no estilo punteado (pulsado, i.e. dedilhado, na Itlia chamado de estilo pizzicato), mais elaborado que o estilo battente, possuam uma textura bem menos contrapontstica do que a encontrada no repertrio alaudstico e vihuelstico. Tal situao levou ao surgimento de um preconceito contra a guitarra nos crculos musicais mais srios, como atesta o relato a seguir do diarista britnico Samuel Pepys, descrevendo seu encontro com o famoso guitarrista italiano Francesco Corbetta (c.1615-1681):
5 de agosto, 1667
Aps terminado [meu encontro] com o Duque de York, e saindo pelo seu quarto
de vestir, eu l vi Signor Francisco afinando sua guitarra, e Monsieur de Puy,
que o fez tocar para mim de maneira admirvel to bem que perturbou-me o fato
de que todo o seu esforo estava dedicado a um instrumento to ruim.[1]
After done with the Duke of York, and coming out through his dressing room, I there spied Signor Francisco tuning his guitar, and Monsieur the Puy, with him who did make him play to me which he did most admirablyso well that I was mightily troubled that all that pains should have been taken upon so bad an instrument.[2]
Conseqentemente,
a guitarra possua um repertrio parte, distinto daquele dos outros
instrumentos de corda pulsada. As publicaes de msica para guitarra continham
primordialmente obras originais para este instrumento, enquanto arranjos de
peas polifnicas vocais eram raros. Certamente, a natureza limitada do
instrumento foi uma importante razo para este fato, uma vez que as
possibilidades de execuo polifnica eram restritas, especialmente na guitarra
de quatro cursos. Por conseguinte, a guitarra ser excluda do presente artigo.
A discusso focar ento as origens das transcries de obras vocais para
alade e vihuela, bem como os procedimentos tcnicos utilizados no processo de
transcrio. Exemplos de obras de Josquin des Prs arranjados por renomados
alaudistas e vihuelistas serviro para demonstrar na prtica os tpicos
discutidos.
Circunstncias Histricas
Os
arranjos de obras vocais para instrumentos de teclado ou de cordas dedilhadas
realizados durante o perodo renascentista eram chamados de intabulaes. As
intabulaes, escritas no sistema de notao de tablatura, provavelmente
destinavam-se inicialmente ao dobramento instrumental das partes vocais na
performance. O fato de que cada parte (voz) das obras originais eram escritas
em livros separados (part books), em
vez de em uma partitura nica contendo todas as vozes, demonstra a praticidade
de reduzir todas as vozes uma nica pauta de tablatura. De fato, este pode
muito bem ter sido o propsito das primeiras intabulaes.
O
primeiro exemplo conhecido de intabulao aparece no Manuscrito Robertsbridge,
de c.1320. Nele, encontram-se dois motetos do Roman de Fauvel arranjados para teclado, escritos em uma combinao
de partitura e letras. Quanto a intabulaes para alade, o primeiro exemplo
data somente de 1507, no Intabulatura de
Lauto: Libro Primo de Francesco Spinacino, publicado por Petrucci. Este
no apenas o primeiro exemplo de intabulao para alade, como tambm o
primeiro livro de msica para alade a ser impresso. Petrucci posteriormente
publicou dois outros livros para alade com obras de Spinacino, alm de um
quarto livro com obras do alaudista milans Joan Ambrosio Dalza em 1508. O fato
de que as intabulaes para alade surgiram quase duzentos anos aps aquelas
para teclado decorre de mudanas na construo e tcnica de execuo do alade
ocorridas no sculo quinze, as quais expandiram as possibilidades polifnicas
do instrumento. Incluem-se aqui o abandono da palheta em favor da execuo com
os dedos da mo direita, bem como a adio de uma sexta corda que expandiu o
mbito do instrumento no registro grave.
Contudo,
a impossibilidade de sustentao de notas longas no alade ainda representava
um obstculo para a transcrio de obras vocais. A soluo encontrada para tal
problema foi o uso de ornamentao, substituindo as notas longas da obra
original por outras de menor durao, uma prtica tambm empregada nas
intabulaes para instrumentos de teclado. As texturas resultantes levaram ao
desenvolvimento de um estilo de composio prprio da msica instrumental,
diferente do j estabelecido estilo vocal (voltaremos a tratar deste aspecto
mais adiante). O Exemplo 1, extrado do The
New Oxford History of Music[3],
ilustra o uso da ornamentao em intabulaes, atravs da comparao do incio
do arranjo de Spinacino para o Christie da Missa
Si Dedero de Obrecht com a verso original.
Exemplo 1
Tratemos agora da vihuela. Sobrevivem apenas
sete livros dedicados exclusivamente msica para vihuela, todos publicados no
curto espao de tempo de quarenta anos (adicionalmente, existem colees de
obras para diversos instrumentos contendo poucas peas para vihuela). Em ordem
cronolgica de publicao, os sete livros so:
1) El Maestro, de Luis Miln (Valencia,
1536);
2) Los Seys Libros del Delphin de Msica,
de Luys de Narvez (Valladolid, 1538);
3) Tres Libros de Msica en Cifras para Vihuela,
de Alonso Mudarra (Sevilha, 1546);
4) Silva de Sirenas, de Enriquez de
Valderrbano (Valladolid, 1547);
5) Libro de Msica de Vihuela, de Diego
Pisador (Salamanca, 1552);
6) Orphenica Lyra, de Miguel de Fuenllana
(Sevilha, 1554);
7) El Parnasso, de Esteban Daza
(Valladolid, 1576).
Todos
foram publicados na Espanha onde, como j foi dito, a vihuela gozava de maior
preferncia que o alade. Exceto pelo livro de Miln, todos incluem
intabulaes de obras vocais alm de composies originais para vihuela.
O
repertrio preferido para intabulaes, tanto no alade como na vihuela,
inclua a maioria dos gneros vocais em voga, tais como missas, motetos,
canes e madrigais. Um grande nmero de compositores tiveram suas obras
adaptadas em intabulaes, mas percebe-se uma predileo pela escola
Franco-Flamenga, como explica Zayas:
A linguagem
musical da frana j tinha se tornado conhecida universalmente na idade mdia,
mas nunca tanto como quando surgiu a famosa escola Franco-Flamenga: os
compositores franceses estavam na vanguarda com gnios universais como Josquin
des Prs e Clment Janequin. Os msicos espanhis conheciam bem o estilo de
escrita destes polifonistas [franceses], j durante o sculo quinze portanto
muito antes dos Hapsburgs dispersarem a capela real dos Reis Catlicos para
substitu-la pelos msicos flamengos de Carlos I.
The musical language of France had already become universally known during the Middle Ages, but never as much as when the famous Franco-Flemish school appeared: the purely French composers were in the forefront with such universal geniuses as Josquin des Prs and Clment Janequin. The Spanish musicians were very conscious of the style these polyphonists wrote in, already during the fifteenth centurytherefore long before the Hapsburgs came and dispersed the royal chapel of the Catholic Kings to replace it with the Flemish musicians of Charles I.[4]
Entretanto,
os vihuelistas e alaudistas no se restringiram apenas a estes dois
compositores. Obras de autores de destaque como Gombert, Obrecht, Willaert,
Sermisy e Arcadelt, para citar apenas alguns, serviram como base para a grande
quantidade de intabulaes produzidas durante os perodos renascentista e
barroco.
Como
exposto at aqui, intabulaes de obras polifnicas vocais foram feitas em
grande escala, primeiro para instrumentos de teclado e subsequentemente para
instrumentos de corda pulsada. Vimos tambm que, devido natureza peculiar da
execuo instrumental, alguns ajustes eram necessrios na transferncia de uma
obra vocal para o meio instrumental. Vamos agora examinar em maior detalhe em
que consistia este processo de adaptao, bem como destacar a importncia
destas intabulaes para os instrumentistas e pesquisadores atuais.
A Importncia das Intabulaes
Como
mencionado acima, as intabulaes eram escritas em tablatura. O sistema de
tablatura consistia de quatro a seis linhas paralelas (dependendo do
instrumento), similar ao pentagrama moderno, sobre as quais eram agregadas
letras ou nmeros para indicar o posicionamento dos dedos da mo esquerda.[5]
Contudo, diferentemente da notao em partitura, na tablatura cada linha
representa uma corda especfica do instrumento. Por exemplo, a linha superior
pode representar a corda mais aguda, a linha abaixo desta a segunda corda e
assim sucessivamente (em alguns pases encontramos um ordenamento inverso,
i.e., a linha superior representava a corda mais grave). Tambm de acordo com o
pas em questo, letras ou nmeros indicavam os trastes nos quais o executante
deveria colocar seus dedos. Assim, a corda solta era representada por um zero
ou pela letra a, o primeiro traste pelo nmero 1 ou pela letra b, etc. O
ritmo era indicado por hastes colocadas acima da tablatura.
Comparada
com a partitura moderna, a tablatura oferece tanto vantagens quanto
desvantagens. Primeiramente, preciso entender que a tablatura um sistema de
notao de ao: ela mostra ao executante o que fazer (i.e. onde colocar os
dedos) para alcanar o resultado musical desejado, mas ela no mostra a msica
propriamente dita. A partitura, ao contrrio, um sistema de notao de
resultado: ela mostra o resultado musical, mas cabe ao executante a tarefa de
descobrir o que fazer fisicamente com o seu instrumento para chegar a este
resultado. Como em instrumentos de corda pulsada uma mesma nota pode ser
executada em diferentes cordas, a tablatura tem a vantagem de indicar com
preciso a corda na qual cada nota deve ser tocada. Porm, ela carece de um
mecanismo para indicar a conduo de vozes e a durao exata de cada nota. A
tablatura meramente indica o intervalo de tempo entre uma nota e a nota
seguinte, sem levar em conta a qual das vozes da trama contrapontstica elas
pertencem. Por esta razo, ao transferir uma intabulao de tablatura para
partitura, de suma importncia estudar a obra vocal original na qual foi
baseada a intabulao, a fim de evitar possveis equvocos quanto conduo de
vozes e durao das notas.
Contudo,
a tablatura tem a vantagem de indicar com preciso os acidentes (sustenidos e
bemis). sabido que durante a idade mdia e renascena os acidentes eram
freqentemente omitidos nas edies de msica vocal. Assumia-se que o cantor
proporcionaria os acidentes necessrios de acordo com as regras da musica ficta. As intabulaes de obras
vocais servem portanto como preciosos tratados de prtica de performance, ao
mesmo tempo documentando a transio do sistema modal para o tonal. Segundo
Trend:
O valor da
tablatura reside no fato de que ela era a forma mais acurada de notao musical
existente no sculo dezesseis. A msica vocal daquela poca, tanto a secular
como a sagrada, era escrita em partes separadas; cada voz, e as vezes cada cantor, possua um part
book separado, ou ento (como no caso dos imensos livros corais colocados
sobre uma estante giratrioo facistol
das catedrais espanholas) precisava manter os olhos fixos em um determinado
canto da pgina. A msica em tablatura, ao contrrio, impressa em grade;
todas as partes podem ser lidas juntas.
Adicionalmente,
na msica vocal do sculo dezesseis, os acidentes eram geralmente deixados
discrio dos cantores, que os proviam de acordo com certas convenes, bem
conhecidas dos msicos em um determinado perodo, porm mudando ao longo dos
anos. Na msica impressa em
tablatura h raramente qualquer dvida sobre um acidente; a nota produzida ao
colocar um dedo no lugar indicado a nota correta; um sustenido ou um bemol
no so indicados por smbolos especficos, mas por um nmero diferente, uma
vez que [a nota] seria tocada em um traste diferente e com um dedo diferente do
que se fosse uma nota natural [i.e. sem acidente].
Percebe-se
ento que a msica preservada em tablatura para alade (ou deveria ser) um
registro mais acurado da inteno do compositor, e de como suas composies
soavam, do que os part-books de
msica vocal. Os vihuelistas que se seguiram a Luis Miln transcreveram um
[grande] nmero de madrigais e composies sacras para o seu instrumento; e
atravs destas transcries pode-se ver quais notas sofriam alterao
cromtica e onde ocorriam os sustenidos e bemis, mesmo se a conduo das
partes individuais no pode ser facilmente determinada.
Estes
fatos so de grande importncia na histria da msica. Durante o sculo
dezesseis houve uma transio gradual dos modos antigos para as modernas
[escalas] maior e maior. A transformao das velhas tonalidades na tonalidade
mais slida dos sculos seguintes foi em grande parte determinada pela msica
escrita para alade, cuja qualidade meldica comeou a fazer do acorde um
elemento essencial da construo musical.
The interesting value of lute tablature lies in the fact that in the sixteenth-century it was the most accurate form of musical notation in existence. The vocal music of the time, both secular and sacred, was written in separate parts; each voice, and sometimes each singer, had either a separate part-book to sing from, or else (as in the case of the immense choir-books which stood in a revolving lecternthe facistol of Spanish cathedrals) had to keep his eyes fixed on a particular corner of the page. The music in tablature, on the contrary, is printed in score; all the parts may be read together.
Again, in sixteenth-century vocal music, the accidentals were generally left to the discretion of the singers, who supplied them according to certain conventions, well known to every musician at a particular time, but changing as the years went by. In music printed in tablature there is seldom any question about an accidental; the note that would be produced by putting down the finger in the place indicated is the right note; whether it is a flat or a sharp is not shown by any special sign, but by [a] different number, since it would be played on a different fret and with a different finger from the natural note.
It will be seen, then, that music preserved in lute tablature is (or should be) a more accurate record of what the composer intended, and how his compositions sounded, than is to be found in the part-books of vocal music. The vihuelistas who followed Luis Miln transcribed a number of madrigals and church compositons for their instrument; and from these transcriptions can be seen which notes underwent chromatic alteration and where the sharps and flats went, even if the actual run of the individual parts is not allways easy to determine.
These facts are of great importance in musical history. During the sixteenth century there was a gradual transition from the ancient modes to the modern major and minor [scales]. The transformation of the older tonalities towards the firmer tonality of succeeding centuries was largely determined by the music writen for the lute, the melodic quality of which began to make the chord an essential element of musical construction.[6]
interessante ressaltar que, enquanto a prtica de suprir acidentes no
indicados pelo compositor ocorria especialmente em pontos cadencias tais como
finais de frases, ou ento servia para evitar intervalos dissonantes como o
trtono, em vrias intabulaes encontramos exemplos de acidentes agregados em
passagens nas quais estes no seriam realmente necessrios. Tais casos podem
ser decorrentes do gosto particular do arranjador, ou talvez representem
diferenas na prtica de performance entre a poca e localizao geogrfica do
compositor e do arranjador. O exemplo abaixo, extrado da Gloria da Missa Faisant Regretz de Josquin,
transcrito por Mudarra, servir como ilustrao.[7]
Exemplo 2
A adio
de acidentes, no entanto, no estava diretamente envolvida no processo da
elaborao do arranjo. Mesmo que tal procedimento implicava um juzo crtico da
parte do arranjador, acidentes no eram agregados com o propsito de adaptar a
obra original para as caractersticas dos instrumentos de corda pulsada.
Tampouco eram eles includos com a inteno de demonstrar as prticas de
performance correntes (apesar de servirem aos estudiosos modernos para este
propsito). Podemos, at certo ponto, atribuir a adio de acidentes s
particularidades do sistema de notao da tablatura, no qual as notas so tratadas
da mesma forma independentemente de serem ou no alteradas por um sustenido ou
um bemol. Por outro lado, o processo da elaborao do arranjo envolvia tcnicas
muito mais complexas, s vezes resultando em alteraes estruturais da obra
original, como veremos a seguir.
O Processo de Transcrio
Os
procedimentos tcnicos envolvidos no arranjo de obras vocais para vihuela e
alade eram em grande parte padronizados, independente do arranjador e seu pas
de origem. Um aspecto que todo arranjador precisava considerar era a
impossibilidade de executar todas as melodias da trama contrapontstica
original, especialmente em obras para quatro ou mais vozes. De acordo com
Brown:
A tcnica da
intabulao manteve-se essencialmente inalterada ao longo do sculo [dezesseis].
Em um arranjo ideal, segundo Adrian le Roy e Vincenzo Galilei, que descrevem o
processo em tratados de execuo do alade, o executante mantm [no arranjo]
tanto da msica vocal quanto seu instrumento permite, apesar de que na prtica
os arranjadores s vezes omitiam uma voz ou readaptavam a escrita polifnica.
The technique of intabulation remained essentially the same throughout the [sixteenth] century. In an ideal arrangement, according to Adrian le Roy and Vincenzo Galilei, who both describe the process in treatises on lute playing, the performer takes over as much of the vocal music as the technique of his instrument allows, although in practice the arrangers sometimes omitted one voice or rearranged the part writing.[8]
Freqentemente
a simples omisso de uma voz de menor importncia possibilitava a execuo de
uma passagem impraticvel, apesar de que alguns casos demandavam mudanas mais
substanciais, e as partes vocais precisavam ser redistribudas para permitir
sua execuo no alade ou vihuela. Contudo, a voz a ser omitida poderia ter
ocasionalmente algumas notas indispensveis para a estrutura vertical de um
acorde; em tais casos, duas vozes poderiam ser combinadas em uma nova melodia,
contendo as notas mais importantes de cada uma das vozes originais, resultando
em uma nova estrutura polifnica. O exemplo 3 contm outro trecho da
transcrio de Mudarra da Gloria da Missa
Faisant Regretz de Josquin. Observe como Mudarra combinou as duas vozes
internas em uma nova melodia, usando uma nota de cada voz alternadamente,
eliminando assim os dobramentos de oitava e reduzindo a passagem a uma textura
de trs vozes.
Exemplo 3
Alm da
inabilidade de manejar diversas melodias simultneas confortavelmente, outro
problema encarado pelos intabuladores eram as notas de longa durao, como
explica Trend:
Luis Miln
e os primeiros alaudistas pensavam inteiramente em termos de contraponto, e no
em termos de harmonia. Eles encaravam a msica como formada por uma quantidade
de vozes movendo horizontalmente; eles no pensavam nela verticalmente como uma
sucesso de acordes. Violas e instrumentos de sopro podiam ocupar o lugar das
vozes (como de fato o faziam freqentemente) e fazer msica da mesma maneira;
eles podiam tocar todas as notas cantadas pelas vozes, e sustent-las pela
mesma durao. Os primeiros rgos podiam fazer a mesma coisa; mas os virginais
e o cravo, devido sua inabilidade de sustentar uma nota aps ela ter sido tocada,
mais bem sugeriam do que copiavam o efeito de vozes cantando em conjunto.
Isto foi
um dos comeos do estilo instrumental em msica distinto do estilo vocal, e
nesta diferenciao o alade, a vihuela e a guitarra foram pioneiros. Eles nem
podiam tocar todas as notas cantadas pelas vozes, muito menos sustent-las, e
portanto, quando uma composio para vozes era transferida para o alade, ela
no era reproduzida, mas somente sugerida.
Luis Miln and the earlier lutenists thought entirely in terms of counterpoint, and not in terms of harmony. They regarded music as made by a number of voices moving horizontally; they did not think of it vertically as a succession of chords. Viols and wind-instruments could take the place of voices (as indeed they frequently did) and make music in the same way; they could play all the notes sung by the voices, and hold them for as long as the voices themselves. The early organs could do the same thing; but the virginals and clavichord, through their inability to sustain a note after it had been struck, were suggesting rather than copying the effect of voices singing together.
This was one of the beginnings of the instrumental style in music as distinct from [the] vocal style, and in this differentiation the lute, the vihuela and the guitar led the way. They could not even play all the notes sung by voices, much less sustain them, and thus, when a composition for voices was transferred to the lute, it was not reproduced, but only suggested.[9]
Uma
possvel soluo para sugerir o efeito de notas sustentadas era repetir notas
longas ou ligadas, tornando-as audveis novamente. Contudo, este procedimento
resultaria em uma sucesso montona de notas repetidas. Portanto, fez-se uso de
outro recurso: a adio de ornamentao. De fato, j vimos, no exemplo 1, que
alaudistas como Spinacino e Dalza agregavam ornamentos s suas intabulaes j
na primeira dcada do sculo dezesseis.
Geralmente
consistindo de figuraes tpicas como trinos, escalas curtas e grupetos, a
quantidade de ornamentao variava de um autor para outro, e s vezes mesmo em
diferentes arranjos feitos pelo mesmo autor. Repetidos sempre que possvel,
estes clichs de ornamentao formavam uma superestrutura, por assim dizer,
sobre a pea vocal, uma rede de motivos completamente independente da concepo
original.[10]
Freqentemente, o resultado era um movimento constante de colcheias e
semicolcheias, obscurecendo os contornos da obra original sob uma srie de
fragmentos escalares. Mas os grandes virtuosos do sculo [dezesseis], como
Valentin Bakfark e Francesco da Milano, foram alm de msicos de menor porte ao
transformar a composio original em uma pea instrumental idiomtica e
virtuosstica, atravs de uma profuso de escalas, trinos e grupetos variados
constantemente.[11] Tal o
caso do alaudista francs Adrian le Roy, cuja transcrio da cano Je nay point plus daffection, de
Sermisi, inclumos a seguir. Observe como le Roy, mesmo ornamentando fortemente
a chanson de Sermisi, consegue manter
os contornos meldicos originais claramente audveis.
Exemplo 4
No
entanto, o recurso da ornamentao no era sempre utilizado de forma to massiva como no exemplo
acima. O arranjo de Fuenllana para o Pleni da Missa Hercules Dux Ferrariae de Josquin, por exemplo, no faz uso
algum de ornamentao. Ao contrrio, a verso para vihuela completamente fiel
ao original, com exceo de algumas notas repetidas e a transposio para uma
tonalidade mais apropriada s caractersticas daquele instrumento.
portanto importante ter em mente que a arte da ornamentao, apesar de
utilizada aqui com o objetivo de adaptar uma obra para um meio distinto do qual
ela foi composta, implicava at certo ponto em um aspecto composicional, em vez
de ser meramente uma ferramenta do processo de transcrio. Ou seja, uma vez
que o arranjador percebia a necessidade da ornamentao para substituir as
notas longas da obra original, a idia de que ele supriria ornamentao de sua prpria
autoria abria diversas possibilidades para exercitar suas habilidades
composicionais, com a partitura original servindo como uma base sobre a qual
ele poderia desenvolver livremente suas idias. Para ilustrar diversos enfoques
possveis de ornamentao, o exemplo 5, extrado da edio de Chiesa da obra
para alade de Francesco da Milano[12],
compara trs intabulaes para alade do Pater
Noster de Josquin, realizadas por diferentes arranjadores.
Exemplo 5
Podemos
portanto afirmar que o estilo de ornamentao estava diretamente relacionado
com as composies originais do arranjador. Por exemplo, nas fantasias para
vihuela de Luys de Narvez encontramos raramente sees homofnicas ou
passagens escalares. Seu estilo era puramente contrapontstico, e isto
refletido em suas intabulaes. Um pequeno trecho do seu arranjo da cano Mille Regretz de Josquin aparece no
exemplo 6.
Exemplo 6
Observe
como a ornamentao de Narvez segue um estilo imitativo, correspondendo s
imitaes da cano original. Conseqentemente, a ornamentao passa de uma voz
para outra, resultando em uma textura mais equilibrada e variada. A
personalidade musical de Narvez tambm aparente pela riqueza do tratamento
harmnico. No penltimo compasso, a voz tenor contm as notas f
sustenidosolf sustenidosol em semnimas, todas consonantes com a melodia do
baixo. Narvez transforma o ltimo sol do tenor em uma dissonncia, ao atrasar
em um tempo a nota sol do baixo. Alteraes como esta no decorriam de uma
necessidade de adaptao instrumental, mas sim constituam contribuies
criativas do arranjador.
Voltando
ao tema da ornamentao, um enfoque inverso era ocasionalmente empregado por
Francesco da Milano. Em seu arranjo de Fort
se Lament de Josquin (exemplo 7), vemos nos primeiros trs compassos os
procedimentos habituais de ornamentao e notas repetidas. Mas no quarto
compasso, da Milano faz o oposto ao desornamentar a verso original, apesar de
que a passagem seria facilmente executvel no alade sem quaisquer alteraes.
Exemplo 7
interessante ressaltar que em um gnero vocal, a missa pardia, encontramos
procedimentos tcnicos similares aos utilizados nas intabulaes. Assim como
nestas, a redistribuio da conduo de vozes e a adio de ornamentao eram
recursos comuns nas missas pardias. Mas aqui, as mudanas feitas na obra
original procediam do desejo do compositor de variar (ou mesmo incrementar) uma
obra pr-existente, enquanto que nas intabulaes elas serviam o propsito
prtico de contornar limitaes instrumentais. Uma exceo a este caso eram as glosas.
Um termo
freqentemente utilizado por msicos espanhis do sculo dezesseis, glosas referia-se a variaes sobre um
hino ou tema religioso. Missas de autores franco-flamengos freqentemente
serviam como base para glosas de
compositores como Mudarra, Valderrbano e Venegas de Henestrosa. O Tratado de Glosas de Diego Ortiz,
publicado em 1553, lista diversos padres de ornamentao para uso na escrita
de glosas. No surpresa que estes
mesmos padres so tambm so encontrados em intabulaes instrumentais da
poca. Outro tipo de variaes muito utilizado pelos vihuelistas eram as diferencias, uma forma similar s glosas, porm baseada em uma melodia ou
seqncia de acordes secular, como Conde
Claros e Gurdame las Vacas. A
distino entre os dois termos, no entanto, no era extremamente precisa, pois
Narvez chama de diferencias suas
variaes sobre o hino O Gloriosa Domina.
Finalmente,
um ltimo aspecto referente
contribuio das intabulaes para o surgimento de um estilo puramente instrumental
merece meno. J vimos que as missas pardia utilizavam procedimentos comuns
aos das intabulaes. Contudo, a missa pardia nem sempre era uma mera
adaptao da pea na qual ela era baseada. Ao contrrio, com freqncia apenas
os temas e motivos da composio original eram preservados, e sobre estes era
criada uma obra polifnica totalmente nova. Similarmente, algumas intabulaes
para vihuela, especialmente as de Mudarra e Fuenllana, contrastavam
radicalmente com os originais vocais, dos quais eram preservados apenas os
compassos iniciais. O restante da intabulao era desenvolvido em estilo de
fantasia, novamente baseado nos temas e motivos extrados da obra original.
Fuenllana foi mais adiante ao seguir algumas de suas intabulaes com fantasias
originais baseadas nos mesmos motivos, as quais ele se referia como fantasia que la remeda (que a imita) ou que se sigue (que se segue).
Concluso
Como
vimos na discusso acima, a arte da intabulao resultou em um vasto repertrio
de peas para alade e vihuela, cuja importncia para o estudo da prtica de
performance pode ser comparada a tratados contemporneos sobre o assunto.
Igualmente importantes como uma valiosa fonte para pesquisas histricas, as
intabulaes documentaram a transio do sistema modal para o tonal, ao mesmo
tempo que impulsionaram o surgimento do estilo instrumental.
Executantes
de hoje em dia, seja seu instrumento o alade, a vihuela ou mesmo o violo
moderno, se beneficiaro certamente deste precioso legado, uma grande parte do
qual continua inexplorada. O autor espera que o presente estudo instigar o
leitor a realizar pesquisas subsequentes sobre o assunto, trazendo ateno
dos executantes e pesquisadores da atualidade este atraente repertrio.
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2003 Copyright de Daniel Wolff. Todos os direitos reservados.
[1] Todas as citaes deste artigo foram traduzidas para o portugus pelo autor.
[2] James Tyler, The
Early Guitar: A History and Handbook (Oxford: Oxford Univ. Press, 1980), 45.
[3] Dom Anselm Hughes e Gerald
Abraham, ed, The New Oxford History of
Music (Londres: Oxford Univ.
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[4] Rodrigo de Zayas, The Music
of the Vihuelists and its Interpretation, Guitar
Review 38, (Summer 1973): 11.
[5] Um sistema semelhante ainda persiste nos dias de hoje em publicaes de peas populares e/ou jazzsticas para violo e guitarra eltrica.
[6] J. B. Trend, Luis Milan and the Vihuelists (Oxford:
Oxford Univ. Press, 1925), 38-40.
[7] No intuito de facilitar a comparao entre a intabulao e o original vocal, neste e em alguns dos prximos exemplos a verso vocal foi reduzida a dois pentagramas e transposta para a tonalidade da transcrio. As intabulaes foram transcritas para a notao do violo moderno.
[8] Howard Mayer Brown, Music in the Renaissance (Englewood, NJ:
Prentice Hall, 1976), 261.
[9] Trend, op. cit., 31-32.
[10] Brown, op. cit., 262.
[11] Ibid, 262-63.
[12] [12] Francesco da Milano, Opera Completa per Liuto, ed. Ruggero Chiesa (Milano: Edizioni Suvini Zerboni, 1971), II:ix.