Artigo publicado
na revista Violo Intercmbio, n.46, So Paulo, 2001.
COMO
DIGITAR UMA OBRA PARA VIOLO
A escolha da digitao um
dos elementos mais importantes no aprendizado de uma obra, principalmente em um
instrumento como o violo, no qual uma mesma nota pode ser tocada em diversas
regies do instrumento. Para fazer uma boa digitao, necessrio um profundo
conhecimento do violo atravs de estudo. Portanto, impossvel elucidar em
poucas linhas as muitas variveis encontradas no processo de digitao.
Pretendo, porm, fornecer aqui alguns princpios bsicos que podero ajudar o
leitor na realizao de sua prprias digitaes. Convm antes aclarar que
passagens tecnicamente complexascomo por exemplo trechos contrapontsticos a
vrias vozesoferecem frequentemente no mais do que uma ou duas opes de
digitao. Por conseguinte, neste artigo discutirei exemplos de carter
primordialmente meldico, nos quais as muitas alternativas de digitao tendem
a confundir o violonista.
A escolha da digitao depende
de diversos fatores:
1.
Dificuldade
tcnica da obra
2.
Caractersticas
individuais (anatomia das mos, nvel tcnico, sonoridade do instrumento)
3.
Estilo
da obra
4.
Interpretao
(fraseado, articulao, timbre, etc.)
Os dois ltimos itens, de grande
importncia, so muitas vezes esquecidos no momento de escolher a digitao, e
portanto merecem ateno especial neste artigo.
O perodo de composio de uma
pea fator decisivo para uma digitao estilisticamente correta. Nas
tablaturas das obras originalmente compostas para os instrumentos precursores
do violo, tal como o alade e a vihuela, observa-se uma preferncia pelas
primeiras posies do brao do instrumento, caracterstica esta que deve ser
preservada para uma maior autenticidade na execuo. J em obras compostas na
segunda metade do sculo dezenove (Coste, Regondi, Trrega), favorecia-se as
posies mais agudas e o freqente uso de glissandos. Tais caractersticas
permaneceram em uso durante boa parte do sculo vinte, como pode-se observar
nas digitaes de Miguel Llobet e Andrs Segvia.
O Exemplo 1 contm um compasso
da famosa Chacona BWV 1004 de J. S. Bach, digitado por Segvia. Note como
Segvia faz uso de diversos translados de mo esquerda, enquanto a mesma
passagem poderia ser facilmente digitada na ntegra numa mesma posio.
Trata-se aqui da imposio de uma digitao tipicamente romntica sobre uma
obra barroca. No obstante esta incongruncia estilstica, notvel o cuidado
de Segvia em buscar uma digitao que refletisse sua prpria interpretao. Os
translados permitem executar a passagem somente nos bordes, obtendo um timbre
bastante peculiar, enquanto a reiterao do polegar da mo direita indica a
busca de uma efeito pesante e marcado.
Exemplo 1)
J. S.
Bach: Chacona, BWV 1004
Digitar uma melodia em uma
nica corda um recurso bastante utilizado para obter uma homogeneidade
tmbrica. Tal recurso geralmente resulta em diversos translados de mo
esquerda, devendo portanto ser reservado para passagens relativamente lentas
nas quais as mudanas de posio no afetam a fluncia da execuo, como no
Exemplo 2. Aqui, o uso do registro agudo da terceira corda facilita a obteno
do timbre dolce, alm de favorecer o vibrato de mo esquerda.
Exemplo 2)
Dolce e
cantabile
No Exemplo 3, temos uma
situao inversa. Nesta passagem da Bagatela 1 de William Walton, digitada por
Julian Bream, as repeties da clula R#-Mi so alternadas entre a segunda e
terceira cordas de forma a proporcionar variedade tmbrica. As possveis interrupes
sonoras resultantes das contnuas mudanas de posio no so indesejveis
neste caso, pois tendem a destacar a articulao da passagem em grupos de duas
notas.
Exemplo 3)
W.
Walton: Bagatela 1
A articulao e o fraseado so
elementos fundamentais na distribuio dos translados na digitao. No Exemplo
4 temos uma melodia seqencial com duas alternativas de fraseado. Para cada uma
das alternativas foi escolhida uma digitao diferente, na qual as mudanas de
posio coincidem com as cesuras do fraseado. Note-se que em cada posio
repetido o mesmo padro de digitao, destacando o carter seqencial da
passagem. J no Exemplo 5, extrado do Soleares de Joaquin Turina, a digitao
de Segvia ressalta a articulao em grupos de duas e trs notas (indicados por
colchetes) atravs dos translados e ligados de mo esquerda.
Exemplo 4) Allegretto
Exemplo 5) J. Turina: Soleares
Cabe ressaltar, contudo, que a
utilizao de translados deve sempre respeitar limites razoveis de dificuldade
tcnica. Na digitao de escalas velozes, por exemplo, convm evitar mudanas
de posio. Se tal no for possvel, prudente coincidir os translados com o
uso de cordas soltas, a fim de obter maior clareza e fluncia na execuo.
Escalas digitadas em uma nica
posio tambm oferecem diversas alternativas de digitao. Uma pergunta
constante dos estudantes de violo : Devo dar preferncia a cordas soltas em
escalas? Sobre este ponto h muitas divergncias entre os violonistas, e muitas
vezes as solues variam para cada caso. Uma boa regra bsica distribuir as
cordas soltas de forma a evitar cruzamentos na mo direita (assumindo uma
digitao alternada dos dedos indicador e mdio). Na escala presente no Exemplo
6 a escolha das cordas soltas garante que na mudana para uma corda mais aguda
o dedo mdio tocar a primeira nota na nova corda, evitando assim cruzar o
dedo indicador por sobre o mdio.
O Exemplo 6 tambm prope um
outro tipo de digitao bastante em voga atualmente: a chamada digitao
cross string (cruzamento de corda). Geralmente usada em obras barrocas, a
digitao cross string distribui os graus conjuntos da escala em cordas
diferentes, permitindo que vrias notas contguas da escala podem soem
simultanemente, favorecendo o legato na execuo. Por esta mesma razo, convm
evitar a digitao cross string em escalas lentas, pois nestas o soar
simultneo dos intervalos de segunda menor e maior fortemente perceptvel,
obscurecendo a clareza meldica e harmnica. Em quanto mo direita, a
alternncia indicador-mdio no uma boa soluo para o freqente uso de
cordas no adjacentes tpico da digitao cross string. Neste caso, melhor
utilizar os quatro dedos da mo direita, tal como se faria em uma passagem de
arpejos.
Exemplo 6) Veloz
Com base nos exemplos acima, o
leitor poder aplicar os conceitos discutidos em obras do seu repertrio. Cada
passagem em particular oferecer diversas solues possveis, e recomendvel
provar vrias alternativas antes de escolher a digitao definitiva. importante
ressaltar mais uma vez que a digitao decorrente da interpretao musical.
Ao estudar uma nova obra, resolva primeiro os problemas interpretativos, e
somente depois escolha uma digitao que reflita a sua interpretao.
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