Artigo publicado na revista Violo Intercmbio, n.46, So Paulo, 2001.

 

COMO DIGITAR UMA OBRA PARA VIOLO

Daniel Wolff

 

A escolha da digitao um dos elementos mais importantes no aprendizado de uma obra, principalmente em um instrumento como o violo, no qual uma mesma nota pode ser tocada em diversas regies do instrumento. Para fazer uma boa digitao, necessrio um profundo conhecimento do violo atravs de estudo. Portanto, impossvel elucidar em poucas linhas as muitas variveis encontradas no processo de digitao. Pretendo, porm, fornecer aqui alguns princpios bsicos que podero ajudar o leitor na realizao de sua prprias digitaes. Convm antes aclarar que passagens tecnicamente complexascomo por exemplo trechos contrapontsticos a vrias vozesoferecem frequentemente no mais do que uma ou duas opes de digitao. Por conseguinte, neste artigo discutirei exemplos de carter primordialmente meldico, nos quais as muitas alternativas de digitao tendem a confundir o violonista.

A escolha da digitao depende de diversos fatores:

1.    Dificuldade tcnica da obra

2.    Caractersticas individuais (anatomia das mos, nvel tcnico, sonoridade do instrumento)

3.    Estilo da obra

4.    Interpretao (fraseado, articulao, timbre, etc.)

Os dois ltimos itens, de grande importncia, so muitas vezes esquecidos no momento de escolher a digitao, e portanto merecem ateno especial neste artigo.

O perodo de composio de uma pea fator decisivo para uma digitao estilisticamente correta. Nas tablaturas das obras originalmente compostas para os instrumentos precursores do violo, tal como o alade e a vihuela, observa-se uma preferncia pelas primeiras posies do brao do instrumento, caracterstica esta que deve ser preservada para uma maior autenticidade na execuo. J em obras compostas na segunda metade do sculo dezenove (Coste, Regondi, Trrega), favorecia-se as posies mais agudas e o freqente uso de glissandos. Tais caractersticas permaneceram em uso durante boa parte do sculo vinte, como pode-se observar nas digitaes de Miguel Llobet e Andrs Segvia.

O Exemplo 1 contm um compasso da famosa Chacona BWV 1004 de J. S. Bach, digitado por Segvia. Note como Segvia faz uso de diversos translados de mo esquerda, enquanto a mesma passagem poderia ser facilmente digitada na ntegra numa mesma posio. Trata-se aqui da imposio de uma digitao tipicamente romntica sobre uma obra barroca. No obstante esta incongruncia estilstica, notvel o cuidado de Segvia em buscar uma digitao que refletisse sua prpria interpretao. Os translados permitem executar a passagem somente nos bordes, obtendo um timbre bastante peculiar, enquanto a reiterao do polegar da mo direita indica a busca de uma efeito pesante e marcado.

Exemplo 1)  J. S. Bach: Chacona, BWV 1004

Digitar uma melodia em uma nica corda um recurso bastante utilizado para obter uma homogeneidade tmbrica. Tal recurso geralmente resulta em diversos translados de mo esquerda, devendo portanto ser reservado para passagens relativamente lentas nas quais as mudanas de posio no afetam a fluncia da execuo, como no Exemplo 2. Aqui, o uso do registro agudo da terceira corda facilita a obteno do timbre dolce, alm de favorecer o vibrato de mo esquerda.

Exemplo 2)  Dolce e cantabile

No Exemplo 3, temos uma situao inversa. Nesta passagem da Bagatela 1 de William Walton, digitada por Julian Bream, as repeties da clula R#-Mi so alternadas entre a segunda e terceira cordas de forma a proporcionar variedade tmbrica. As possveis interrupes sonoras resultantes das contnuas mudanas de posio no so indesejveis neste caso, pois tendem a destacar a articulao da passagem em grupos de duas notas.

Exemplo 3)  W. Walton: Bagatela 1

A articulao e o fraseado so elementos fundamentais na distribuio dos translados na digitao. No Exemplo 4 temos uma melodia seqencial com duas alternativas de fraseado. Para cada uma das alternativas foi escolhida uma digitao diferente, na qual as mudanas de posio coincidem com as cesuras do fraseado. Note-se que em cada posio repetido o mesmo padro de digitao, destacando o carter seqencial da passagem. J no Exemplo 5, extrado do Soleares de Joaquin Turina, a digitao de Segvia ressalta a articulao em grupos de duas e trs notas (indicados por colchetes) atravs dos translados e ligados de mo esquerda.

Exemplo 4)  Allegretto

Exemplo 5)  J. Turina: Soleares

Cabe ressaltar, contudo, que a utilizao de translados deve sempre respeitar limites razoveis de dificuldade tcnica. Na digitao de escalas velozes, por exemplo, convm evitar mudanas de posio. Se tal no for possvel, prudente coincidir os translados com o uso de cordas soltas, a fim de obter maior clareza e fluncia na execuo.

Escalas digitadas em uma nica posio tambm oferecem diversas alternativas de digitao. Uma pergunta constante dos estudantes de violo : Devo dar preferncia a cordas soltas em escalas? Sobre este ponto h muitas divergncias entre os violonistas, e muitas vezes as solues variam para cada caso. Uma boa regra bsica distribuir as cordas soltas de forma a evitar cruzamentos na mo direita (assumindo uma digitao alternada dos dedos indicador e mdio). Na escala presente no Exemplo 6 a escolha das cordas soltas garante que na mudana para uma corda mais aguda o dedo mdio tocar a primeira nota na nova corda, evitando assim cruzar o dedo indicador por sobre o mdio.

O Exemplo 6 tambm prope um outro tipo de digitao bastante em voga atualmente: a chamada digitao cross string (cruzamento de corda). Geralmente usada em obras barrocas, a digitao cross string distribui os graus conjuntos da escala em cordas diferentes, permitindo que vrias notas contguas da escala podem soem simultanemente, favorecendo o legato na execuo. Por esta mesma razo, convm evitar a digitao cross string em escalas lentas, pois nestas o soar simultneo dos intervalos de segunda menor e maior fortemente perceptvel, obscurecendo a clareza meldica e harmnica. Em quanto mo direita, a alternncia indicador-mdio no uma boa soluo para o freqente uso de cordas no adjacentes tpico da digitao cross string. Neste caso, melhor utilizar os quatro dedos da mo direita, tal como se faria em uma passagem de arpejos.

Exemplo 6)  Veloz

Com base nos exemplos acima, o leitor poder aplicar os conceitos discutidos em obras do seu repertrio. Cada passagem em particular oferecer diversas solues possveis, e recomendvel provar vrias alternativas antes de escolher a digitao definitiva. importante ressaltar mais uma vez que a digitao decorrente da interpretao musical. Ao estudar uma nova obra, resolva primeiro os problemas interpretativos, e somente depois escolha uma digitao que reflita a sua interpretao.

 

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