Artigo publicado no Assovio - Peridico da Associao Gacha do Violo, v. 2, n.9, Porto Alegre, 2002. Verso em ingls publicada em Soundboard, v. 29, n. 2&3, Claremont, California, 2002. Verso em espanhol publicada no livro 'Abel Carlevaro - Un Nuevo Mundo en la Guitarra', de Alfredo Escande (Montevidu: Aguilar, 2005).

 

IN MEMORIAM ABEL CARLEVARO

Daniel Wolff

 

Em julho deste ano, quando me encontrava em Londrina lecionando no Festival de Msica daquela cidade, recebi a triste notcia do falecimento do meu amigo e professor Abel Carlevaro (1918-2001). Ao retornar a Porto Alegre, me foi sugerido  escrever um artigo sobre Carlevaro para o peridico da ASSOVIO. Desde o falecimento do maestro, inmeros artigos sobre sua vida e obra foram publicados em revistas e peridicos especializados de diversos pases, prova da inegvel importncia de Carlevaro para o mundo violonstico. Sabendo da existncia de extenso material publicado sobre as realizaes musicais de Carlevaro, pareceu-me no ser necessrio repetir uma vez mais tais informaes, que podem ser facilmente obtidas por outros meios. Portanto, decidi enfocar o lado pessoal de Carlevaro, atravs do relato do meu convvio com o maestro.

Meu primeiro contato com a obra de Carlevaro se deu quando eu era ainda um iniciante ao violo. Tive a oportunidade de estudar com ex-alunos do maestro, que me incentivaram a praticar os exerccios tcnicos de seus quatro Cuadernos, bem como a executar algumas de suas obras para violo. Os exerccios contidos nos Cuadernos permitiram um rpido aprimoramento de minha tcnica violonstica, assim como ocorreu e ainda ocorre com muitos estudantes de violo ao redor do mundo. Instigado pelos excelentes resultados obtidos, no tardou para que surgisse em mim um desejo de poder estudar diretamente sob a orientao do maestro.

A primeira oportunidade concreta para atingir tal objetivo se deu quando eu cursava o ltimo ano do segundo grau. Poucos meses antes do exame vestibular, eu ainda no sabia ao certo se cursaria ou no graduao em msica; nem mesmo sabia onde iria realizar tal curso. O destino quis que um amigo violonista, com quem eu fazia duo, se transferisse para Montevidu. Poucas semanas depois, ele me escreveu contando que estava estudando com Carlevaro. Repentinamente, a possibilidade de estudar com o maestro, que at ento me parecera distante e remota, tornava-se algo palpvel.

Durante minhas frias de inverno, empreendi uma viagem a Montevidu, no intuito de conhecer a cidade, visitar a universidade local e, principalmente, conhecer Carlevaro pessoalmente e indag-lo sobre a possibilidade de me tornar seu aluno. J no meu primeiro dia em Montevidu, telefonei a Carlevaro e perguntei se ele poderia me receber. Ele contestou que estava de partida para a Europa e que, portanto, s teria tempo disponvel aps retornar ao Uruguai, no ms seguinte. Insisti, explicando que havia vindo do Brasil especialmente para conhec-lo, e Carlevaro, gentil como sempre, abriu uma exceo e me pediu que fosse sua casa naquele mesmo dia.

Lembro que sa do meu hotel, localizado no centro da cidade, duas horas antes do horrio marcado para nossa entrevista. Eu tinha ento dezesseis anos, e estava portanto naturalmente ansioso com relao ao encontro com o clebre mestre. No af de controlar minha ansiedade, caminhei lentamente durante as duas horas seguintes pela Avenida 18 de Julio, at chegar residncia do maestro.

Carlevaro recebeu-me muito cordialmente, perguntou-me sobre meus professores anteriores, minhas preferncias musicais e meus anseios sobre a carreira artstica. Tambm falou-me de seus projetos presentes e futuros, como quem os conta a um colega. Este aspecto humilde da personalidade de Carlevaro me impressionou profundamente, e permitiu que eu me sentisse bastante vontade junto a ele, no obstante nossa diferena de idade e de nvel de desenvolvimento musical. Finalmente, disse-me que teria muito prazer em me aceitar como aluno. Combinei com ele que me transferiria para Montevidu no incio do ano seguinte, to logo terminasse meus estudos secundrios. Lembro-me que, ao sair, enquanto descia pelo elevador, cheguei a dar pulos de alegria, mas logo me controlei temendo causar danos ao mesmo, o que certamente resultaria em incmodos condominiais para o maestro.

No ano seguinte, conforme o combinado, transferi-me para Montevidu, onde ingressei no curso de graduao da Escuela Universitria de Msica, na classe do Prof. Eduardo Fernndez. Paralelamente, nos trs anos seguintes, tive aulas semanais com Carlevaro, exceto pelos perodos nos quais ele se ausentava para viagens ao exterior. Aprendi muito com ele, tanto sobre o violo como sobre msica em geral. Porm, as lembranas que mais conservo so da pessoa Abel Carlevaro, sempre um verdadeiro gentleman. Discutamos longamente sobre aspectos tcnicos e musicais, e sua postura era sempre a de quem discute com um colega, sem tentar demonstrar que estava em um nvel superior ou tentar impor suas idias forosamente. Aceitava, portanto, divergncias de minha parte quanto aos seus preceitos, desde que fossem resultantes de profunda reflexo terica, aliada subsequente comprovao prtica. O respeito, carinho e dedicao que ele demonstrava aos seus alunos so ainda hoje referncias que uso no trato com meus alunos e colegas.

Aps o trmino de minha estadia no Uruguai, encontrei Carlevaro em diversas ocasies. Todas as minhas idas subsequentes a Montevidu, para realizar concertos ou ministrar cursos, incluam invariavelmente uma visita ao meu antigo mestre. Ele continuava demonstrando seu respeito e ateno, por vezes com pequenos gestos, como um telefonema minutos antes de um recital meu, para desejar-me xito.

Tambm tivemos momentos de agradvel convvio social, como no casamento de um amigo, que tambm fora aluno do maestro. Carlevaro e sua esposa estavam sentados na mesma mesa que eu, junto a vrios de seus outros alunos. Foi uma noite muito agradvel, com animadas conversas e brindes, ao fim da qual o maestro aceitou participar de uma dana de roda junto a mim e meus colegas, com um humor e disposio impressionantes para sua j avanada idade.

A ltima vez que o vi foi em 1999, quando estive em Montevidu para tocar concertos e ministrar cursos na Universidade. Quando cheguei em sua residncia para uma visita cordial, encontrei o maestro bastante estressado com um problema. Ele tinha h pouco comprado um computador e, no tendo ainda domnio do mesmo, "lutava" com um software de edio de texto para digitar a smula de um curso que ministraria em breve na Alemanha. Prontamente ofereci-me para ajud-lo e terminei por ensinar ao maestro diversos "segredos" do manejo de um computador, conhecimentos to comuns nos dias de hoje, mas que para Carlevaro eram verdadeiros mistrios. O maestro demonstrava agora a postura de uma criana, que se deleita e sorri a cada novo truque aprendido. Foi outra grande lio de vida para mim, entre tantas que recebi do maestro. Sua sede de saber era constante, fosse ela direcionada a complexos conhecimentos musicais, fosse ao uso de um simples editor de texto. Ao final da visita, em sinal de agradecimento, fez questo de acompanhar-me at a calada da rua. Desta vez, parecia ser ele quem desejava dar pulos de felicidade durante o trajeto do elevador, em celebrao aos novos conhecimentos aprendidos.

O falecimento de Carlevaro representa uma grande perda para o mundo violonstico. Conforta-me o fato de que o maestro manteve-se ativo at o fim da vida. Sua morte ocorreu em Berlim, onde iniciava uma turn de concertos pela Europa. Seu legado, porm, ainda sobrevive, e no tenho dvidas que os frutos de seu labor continuaro sendo uma fonte de inspirao constante para as geraes futuras.

 

2001  Copyright de Daniel Wolff. Todos os direitos reservados.